No Brasil, a mídia foi extremamente importante para a emergência de três elementos centrais da conjuntura política da última década: a popularização da ideia de crise, a radicalização da direita tradicional e a normalização da extrema direita no debate público

As interpretações sobre a influência da mídia na cena política muitas vezes enfatizam a ação direta, de modo que determinado veículo agiria explicitamente para eleger um político, atacar outro ou influenciar decisões. Não é difícil elencar casos e momentos do tipo ou destacar um padrão de ações de certos jornais, revistas e emissoras de televisão.

A ênfase em tais momentos, todavia, corre o risco de simplificar as formas de atuação pública da mídia. Menos evidente que as manifestas tomadas de posição, a escolha de temas e vozes é frequentemente mais eficaz para influenciar perspectivas políticas, consolidar novos sensos comuns e, com isso, favorecer grupos sociais. Não apenas este caminho mantém a aparência de imparcialidade, central para a autoimagem do jornalismo profissional contemporâneo, como também reduz resistências produzidas por uma intervenção mais explícita no debate público.

Deve-se desde o início afastar, contudo, formulações conspiracionistas, populares em tempos de redes sociais, que atribuem à mídia o poder de tudo decidir. Se é evidente que jornais, rádios e redes de televisão são atores políticos influentes, isso não os torna capazes de determinar ou prever os resultados das disputas políticas. Como é corriqueiro no mundo político, muitas vezes a mídia é golpeada pelas consequências de seus próprios atos.

Arte: Reberson Alexandre
Arte: Reberson Alexandre

Todos os comentários iniciais do texto, que talvez tenham afastado o leitor por sua excessiva generalidade, sugerem formas para interpretarmos o papel da mídia na crise democrática brasileira da última década. O governo Bolsonaro ou os esforços golpistas de seu mandato não foram um resultado urdido por boa parte dos grandes meios de comunicação, que enfrentaram ataques do então presidente e assumiram posições críticas a ele na eleição de 2022. Com menor ênfase nas manifestações explícitas e um olhar mais atento a insistências em certos temas, escolha de protagonistas e construção de climas ideológicos, é possível compreender, contudo, parte do enredo da crise, que teve em Bolsonaro não um resultado necessário, mas um desenlace condizente com os últimos anos.

A mídia foi extremamente importante para a emergência de três elementos centrais da conjuntura política brasileira da última década: a popularização da ideia de crise, a radicalização da direita tradicional e a normalização da extrema direita no debate público. Se o primeiro elemento foi explicitamente mobilizado pelos jornais e pelas redes de televisão, que emulavam todo o tempo uma crise infindável, os outros dois são antes consequências da ação dos meios de comunicação do que formulações diretamente defendidas por eles. Três discursos produzidos pelos principais jornais e emissoras televisivas brasileiras tiveram, contudo, papel central na construção do clima político dos últimos anos e nos caminhos da cena política brasileira: o da anticorrupção, o da hegemonia da esquerda e o da polarização.

A corrupção foi elemento central das representações midiáticas do Estado e da sociedade brasileira nas últimas décadas. Frequentemente associada ao Partido dos Trabalhadores (PT), sobretudo após o escândalo do Mensalão de 2005, o discurso parte de um vocabulário jurídico-penal, mas se ampara em certa moralidade, que usualmente contrapõe, ao menos nos discursos da maior parte dos meios de comunicação, as virtudes da iniciativa privada, do mercado, às vicissitudes do Estado, muitas vezes retratado como intrinsicamente corrupto.

A forma de divulgação das informações, por meio de uma sequência de escândalos1 que podiam ser a qualquer momento denunciados, a vagueza da identificação dos “malfeitores”, que por vezes pareciam ser identificados com todos os políticos, e a frequência insistente do discurso foram fundamentais para construir um clima de crise constante. Reiterado ao longo do tempo, ele ganhou intensidade quando se sobrepôs a outra crise, a econômica, e consolidou uma imagem profundamente negativa do Estado, visto como parasita da sociedade. A terapêutica proposta combinava largas doses de punições, mesmo que a contrapelo dos direitos previstos na lei, a uma política de redução do Estado, sobretudo em seu funcionalismo e em sua capacidade de promover serviços públicos. Discurso anticorrupção e neoliberalismo expunham afinidades eletivas e compunham, desse modo, um todo.2 Como parte da formulação estava a contraposição entre uma esquerda estatista e uma direita antiestatista.

O sucesso do petismo nas eleições presidenciais era frequentemente explicado por meio do repertório do pensamento político brasileiro de críticas às relações entre Estado e sociedade, com farto uso de conceitos como populismo, patrimonialismo e clientelismo. Nesse ponto, o discurso anticorrupção se encontra com o da hegemonia da esquerda no Estado e no debate público. A narrativa não era tão frequente quanto a da corrupção e da polarização, que será tratada logo a seguir, mas funcionava como elemento importante para articulá-las. Havia ainda uma particularidade no modo como ela havia sido construída, sobretudo nos dois jornais paulistas de circulação nacional e no jornal O Globo: se o discurso anticorrupção era moldado por reportagens e chamadas de capa, a ideia de uma hegemonia da esquerda passava pelo texto dos colunistas e eventualmente pelos editoriais. Ganhou corpo, nesse momento, uma abertura das principais mídias nacionais a discursos de ultradireita.

Não me refiro, nesse caso, aos argumentos mais corriqueiros da direita brasileira, que sempre tiveram forte presença nos meios de comunicação em todos os períodos históricos. Se a reivindicação de identidades ostensivas à direita esteve em baixa no pós-1945, nunca deixamos de ter, no debate público e na imprensa, diletos representantes de uma variedade de estilos da direita brasileira, como as trajetórias no debate público de personagens como Paulo Francis, Roberto Campos e Miguel Reale bem demonstram. Durante a última década, a mídia demonstrou, contudo, maior porosidade a argumentos da ultradireita, outrora afastados do centro do debate público.

Por um lado, a abertura à ultradireita ocorreu pela escolha de novas vozes. São particularmente eloquentes os movimentos da Folha de S.Paulo, jornal cujo editor reivindicou recentemente uma posição favorável, em seus editoriais, à “economia de mercado e ao receituário liberal, tanto para economia como para liberdades individuais”.3 Talvez por interpretá-los como em falta no debate público brasileiro, que seria de esquerda, o jornal abriu espaço a personagens “à direita” da direita que costumava escrever em suas páginas. Em certo momento, o jornal paulista tinha apóstolos do anarcocapitalismo, como Hélio Beltrão, representantes de movimentos sociais que defendiam o linchamento de artistas por meio de campanhas de pânico moral, como Kim Kataguiri, e produtores de mitologia histórica para consumo da ultradireita, caso de Leandro Narloch.

É possível que a justificativa para tais nomes decorra da representatividade social de suas ideias ou da presença no jornal de nomes identificados à esquerda, como André Singer, Guilherme Boulos e Marcelo Freixo. Citando outra vez o editor do jornal, o espaço dado a tais “novos” personagens poderia ser justificado pela pretensão do jornal de expor um “leque amplo de vozes da sociedade”.4 A questão é que, em certo momento, esse leque parece ter sido aberto até posições da extrema direita que não costumavam ocupar os mais influentes veículos do debate público brasileiro. Mesmo que as escolas de jornalismo contraponham didaticamente as colunas de opinião, as reportagens e os editoriais, há uma mútua determinação entre esses espaços, um transbordamento, por vezes não consciente, que faz temas circularem entre as partes do jornal. O espaço dado aos novos personagens foi um dos capítulos da normalização de vozes de extrema direita no debate público, o que trouxe, como consequência inevitável, a normalização de discursos frontalmente contrários não apenas à democracia brasileira, mas também às experiências democráticas do pós-1945.

Outra frequente justificativa para esse movimento decorria do espaço dado a vozes até há pouco ocultadas, mesmo que socialmente relevantes. Aqui ganha corpo a ideia, comum em vários espaços e interpretações do Brasil das últimas décadas, do predomínio da esquerda no debate público brasileiro. O tema é espinhoso e exigiria mais linhas do que disponho, mas vale ao menos ponderar a forte disparidade entre as exigências para caracterizar atores e discursos como de direita ou de esquerda. Enquanto radicais de direita são retratados como centristas e entusiastas da extrema direita como direitistas moderados, defensores da social-democracia por vezes ganham tintas de revolucionários. Com frequência, valorizam-se excessivamente as palavras – no caso, a reivindicação pública da identidade de direita – ante as feições do discurso. Diante de tal assimetria na definição das identidades, é de bom-tom ter certa prudência na caracterização de nosso passado recente e nem tão recente.

Não foi apenas nas páginas da imprensa ou nos programas de televisão, a cabo ou abertos, que a ultradireita ganhou força e protagonismo na política brasileira. O papel das redes sociais, do Facebook ao WhatsApp, é sem dúvida incontornável para compreender o sucesso eleitoral e a força política do campo. Reconhecer a relevância das redes não significa, entretanto, recusar o lugar central das mídias tradicionais, seja na produção de discursos, seja na ação sobre ideias e visões de mundo. Se os protagonistas da ultradireita construíram boa parte de suas trajetórias na internet, outro tanto da caminhada passou diretamente, ou foi pavimentado, por decisões dos meios de comunicação tradicionais. Da rotinização da crise, por meio do discurso anticorrupção, à normalização da extrema direita, por meio do espaço concedido a novas vozes, emerge um debate público pautado pela agressividade dos embates e pelo extremismo de várias posições. Deve-se ressaltar que a radicalidade vinha quase que exclusivamente da direita, não apenas em razão dos novos protagonistas de extrema direita, mas também da radicalização de vários protagonistas do campo.

A explicação predominante para os novos tempos recorreu ao conceito de polarização. Em bom ensaio, reproduzido em seu livro,5 Rodrigo Nunes expõe como a recepção da bibliografia norte-americana sobre o termo deixou de lado um adjetivo muito influente para a construção de seu sentido: a ideia de que a polarização seria “assimétrica”. Dito de outro modo, teria sido ocultada a indicação de que a polarização não implicaria falsa equivalência, mas reconheceria a desigualdade entre os polos. É possível levantar outras questões sobre o conceito, todas mais extensas do que o presente texto permite, mas aqui nos convém reter um aspecto essencial: o uso do conceito de polarização pela imprensa brasileira procurou mais aproximar esquerda institucional e extrema direita, Lula e Bolsonaro, do que ressaltar suas profundas diferenças.

Tal como utilizado, o conceito retira o protagonismo da direita nos ataques à democracia e acaba por nivelar, como igualmente nocivas à ordem política brasileira, esquerda institucional e extrema direita. Como horizonte ideal da política brasileira emerge uma política não polarizada, reduzida ao predomínio do centro na disputa entre múltiplas terceiras vias, todas mais afeitas à técnica que à ideologia. Resta pouca atenção às formas pelas quais parte do discurso da ultradireita, normalizado ao longo dos últimos anos, ressurge como saída “técnica”, indicada por especialistas. O experimento macabro de Tarcísio de Freitas na segurança pública paulista é um bom exemplo.

Os movimentos descritos ao longo das últimas páginas buscam entender o papel da mídia na construção da crise democrática brasileira não tanto com base em suas manifestações mais explicitas, caso de alguns famosos editorais do Estado de S. Paulo, mas sobretudo com base na construção de alguns consensos críticos à democracia brasileira, da popularização de argumentos antidemocráticos e da normalização de atores de extrema direita, antes relegados aos fundos da cena. Parte desses movimentos parece decorrer de cálculo, mas outras tantas escolhas revelam um ator que correu e ainda corre o risco de se tornar vítima das próprias escolhas. Em tempos de forte atenção ao papel das redes sociais na construção de discursos e atores antidemocráticos, olhar para as mídias tradicionais pode revelar aspectos crucias da tortuosa trajetória brasileira dos últimos anos.

 

Jorge Chaloub é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Parte deste texto se inspira em pesquisa, ainda em andamento, sobre o papel dos intelectuais de ultradireita no jornal Folha de S.Paulo. Gostaria de agradecer aos bolsistas, financiados pela Faperj e pelo CNPq, que me ajudaram a trabalhar o material: Andre Santos, Karen Guimarães, Lincoln Fernandes e Nina Oliveira. Além do levantamento empírico, eles propuseram chaves interpretativas importantes para a análise das colunas e do papel do jornal.

1 Vale menção às reflexões de Marcos Otávio Bezerra sobre o tema, em seu livro Corrupção. Um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil, Papéis Selvagens, 2018.

2 Tratei do tema em alguns trabalhos ao lado de Pedro Lima.

3 José Henrique Mariante, “Diretor de redação da Folha responde aos leitores”Folha de S.Paulo, 24 abr. 2024.

4 Ibidem.

5 Rodrigo Nunes, Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição, Ubu, 2022.

Fonte:Le Monde Diplomatique Brasil