Não víamos algo assim desde a mobilização de 2003 contra a guerra no Iraque liderada por George W. Bush e Tony Blair. Em 11 de novembro de 2023, segundo os organizadores, mais de 800 mil pessoas ocuparam as ruas de Londres em solidariedade a Gaza. Os manifestantes dirigiam-se ao governo conservador, bem como ao Partido Trabalhista, que também se posicionou a favor de Israel



Desde o início da ofensiva israelense contra Gaza, em outubro de 2023, um fosso se abriu entre a classe política e a opinião pública britânica. O governo conservador de Rishi Sunak e a oposição trabalhista de Keir Starmer deram apoio incondicional à guerra liderada por Benjamin Netanyahu, em nome do direito de defesa de Israel.

No entanto, a população britânica rejeita a ideia de que Israel deva bombardear a área até a eliminação do Hamas. Em novembro, 59% das pessoas entrevistadas pela YouGov queriam que Israel encerrasse sua campanha militar, enquanto apenas 19% se declaravam a favor da continuação. Em fevereiro, 66% dos entrevistados apoiavam um cessar-fogo, e apenas 13% defendiam a guerra contra os palestinos. Atualmente, uma maioria de 56% pede o fim das vendas de armas para os israelenses, contra 17% que apoiam sua continuidade.1

A conservadora Alicia Kearns, presidente da comissão de relações exteriores em Westminster, revelou, no fim de março, a existência de um parecer jurídico oficial do governo britânico que estabelecia que Israel estava violando o direito humanitário internacional. Como tal conclusão implicava que Londres deixasse de vender armas a Tel Aviv, o governo se recusou a tornar público o documento. Entretanto, em 2 de abril, ataques de mísseis israelenses mataram três funcionários britânicos da organização beneficente World Central Kitchen, além de outros quatro trabalhadores, enquanto prestavam ajuda em Gaza. No dia seguinte, mais de seiscentos juristas e acadêmicos – incluindo três juízes aposentados da Suprema Corte britânica – denunciaram a ilegalidade das vendas ao Exército israelense.2

Nos últimos seis meses, a solidariedade com o povo palestino tem resultado em manifestações que estão entre as maiores da história moderna. Semana após semana e mês após mês, as ruas de Londres e de outras cidades britânicas têm se enchido de manifestantes pedindo o cessar-fogo. A maior delas até o momento reuniu quase 1 milhão de pessoas. Em resposta, o governo Sunak condenou os manifestantes e procurou meios de criminalizá-los.

 

“Marchas do ódio”

Em novembro, a secretária do Interior do governo britânico pediu à polícia metropolitana de Londres que proibisse a grande manifestação que se aproximava. Como os oficiais da polícia responderam que não havia base legal alguma para apoiar a decisão, Suella Braverman alegou que os manifestantes pretendiam profanar um memorial da Primeira Guerra Mundial. Suas falas incitariam também militantes de extrema direita a atacar a marcha, o que lhe forneceria um pretexto para proibir futuros encontros. Contudo, os homens que responderam ao chamado da secretária acabaram atacando as forças policiais e ferindo vários policiais, em alguns casos gravemente.

Após esse fracasso, o premiê Sunak teve de exigir a renúncia de Braverman, mas seu governo e a imprensa de direita continuaram seus ataques às manifestações a favor do cessar-fogo, chamando-as de “marchas do ódio”. Seu alvo constante, o slogan “Do rio ao mar, a Palestina será livre”, foi qualificado como antissemita, embora não expresse a menor hostilidade aos judeus. 

Quando ainda era secretária do Interior, Braverman havia recomendado aos serviços policiais que interpretassem esse slogan como a “expressão de um desejo violento de ver Israel apagado do mapa” e punir seu uso em nome do respeito à ordem pública.3 Em pelo menos um caso, a polícia seguiu as instruções da secretária: em Manchester, uma jovem de origem palestina foi presa por injúria racial porque o havia utilizado.4

Os apoiadores de Israel reivindicam o direito de discernir o verdadeiro significado do slogan “Do rio ao mar, a Palestina será livre”, visto como um apelo ao massacre ou à expulsão, uma vez que não especifica o que acontecerá com a população judaica de Israel depois que a Palestina for liberta. Os palestinos e seus aliados, que enfatizam que a frase é, na realidade, um apelo à igualdade, e não à limpeza étnica, constantemente têm o acesso aos meios de comunicação britânicos negado. Além disso, os defensores de Israel invocam repetidamente seu “direito à defesa” e seu “direito à existência”. Porém, a primeira formulação não especifica quais métodos o Estado pode legitimamente empregar em nome da autodefesa, e a segunda ignora a questão da existência de um Estado palestino logo ao lado. Os palestinos certamente percebem essas declarações como ameaças e agressões, pelo menos da maneira como são empregadas pela maioria dos defensores da guerra de Israel contra Gaza.

No início de março, durante um discurso proferido em frente à residência oficial do primeiro-ministro, Sunak elevou sua campanha contra o movimento de solidariedade com a Palestina a outro patamar. Ele afirmou que as manifestações em favor do cessar-fogo resultaram em “um aumento chocante de distúrbios e atos criminosos extremistas”, incluindo “intimidações, ameaças e a preparação de ações violentas”. Na realidade, a contestação, particularmente pacífica e disciplinada, resultou em menos prisões do que um festival de música ou um evento esportivo de igual magnitude.5 O discurso do primeiro-ministro baseou-se essencialmente em afirmações de jornalistas tão inflamáveis quanto irresponsáveis, afirmando, sem nenhuma prova, que Londres estava se tornando uma área proibida para judeus.6

Dois acadêmicos britânicos foram condenados por difamação pela ministra da Ciência, Michelle Donelan, que os classificou como apoiadores do Hamas.7 Os arcebispos de Canterbury e de York sentiram a necessidade de expressar sua preocupação com políticas que “atingiriam de forma desproporcional os muçulmanos” depois que o governo confiou ao ministro das Comunidades, Michael Gove, a tarefa de elaborar uma nova definição de extremismo. Figura proeminente na direita neoconservadora, Gove afirma há muito tempo que os muçulmanos britânicos representam uma ameaça para a democracia liberal. Por sua iniciativa, as autoridades agora considerarão como extremista qualquer desejo de minar as instituições ou os valores britânicos.8

Os ataques ao movimento de solidariedade com a Palestina também se alimentam de declarações de figuras governamentais adornadas com títulos orwellianos, como John Woodcock: o “conselheiro independente em questões de violência e perturbações políticas” propôs recentemente que os principais partidos concordassem com a “‘tolerância zero’ em relação a grupos que ameaçam a democracia”, como a Campanha de Solidariedade com a Palestina (Palestine Solidarity Campaign – PSC).9

“Se opiniões ‘extremistas’ são ilegais”, escreveu no X (ex-Twitter), em 4 de março, a deputada conservadora Miriam Cates, “então quem define ‘extremismo’ tem o poder de restringir a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de imprensa e a liberdade de associação. Esse é o caminho para o autoritarismo.”

Woodcock é um ex-deputado trabalhista que se juntou ao Partido Conservador em 2019. No entanto, muitos deputados de seu antigo campo compartilham sua hostilidade às manifestações contra a guerra em Gaza, começando pelo líder do Partido Trabalhista, Keir Starmer. No início da ofensiva israelense, Starmer afirmou que Israel tinha o direito de cortar a água e a eletricidade dos civis em Gaza – uma ação que é, no entanto, considerada crime de guerra. Diante da indignação, Starmer teve de se retratar de suas declarações, alegando, contra todas as provas, que havia entendido mal a questão.10

Ele também suspendeu dois parlamentares: Andy McDonald, por declarar, em uma manifestação em Londres: “não vamos parar até que a justiça seja feita, até que toda a população, israelense e palestina, do rio ao mar, possa viver em liberdade e paz”; e Kate Osamor, por ter descrito a guerra em Gaza como genocídio, mesmo que a Corte Internacional de Justiça já houvesse considerado a queixa apresentada pela África do Sul contra Israel como admissível. McDonald foi reintegrado ao seu grupo parlamentar após a derrota sofrida pelo Partido Trabalhista no fim de fevereiro, durante uma eleição parcial importante em Rochdale, na região metropolitana de Manchester. O vencedor, George Galloway, que retornou ao Parlamento como trabalhista após sua expulsão do partido em 2003, em função de sua oposição à guerra no Iraque, havia transformado essa eleição em um referendo contra o apoio de Keir Starmer a Israel.

A vitória de Galloway ocorreu após uma controvérsia violenta. Poucos dias antes de sua eleição, o Partido Nacional Escocês (SNP) apresentou uma moção na Câmara dos Comuns em favor do cessar-fogo. O Partido Trabalhista desejava remover do documento referências ao “castigo coletivo do povo palestino” e ao “massacre de civis inocentes”. Também queria substituir o claro apelo ao cessar-fogo por circunlóquios que dariam a Benjamin Netanyahu margem suficiente para continuar sua guerra. Segundo a formulação proposta pelos trabalhistas, “os israelenses têm o direito de ter a garantia de que os horrores de 7 de outubro de 2023 não se repetirão”. Entretanto, não havia absolutamente nenhuma menção ao direito dos palestinos de ter a garantia de que os horrores sofridos desde 7 de outubro (e que os acometem desde muito antes) não se repetiriam.

Como Starmer não queria que seus deputados votassem contra a moção do SNP nem se abstivessem, ele impôs ao presidente da Câmara, Lindsay Hoyle, uma votação das emendas trabalhistas antes da votação da moção. Essa flagrante violação das regras de procedimento parlamentar permitiu-lhe impedir que o terceiro maior partido da Câmara defendesse uma posição que reflete a opinião majoritária do país. Alguns líderes do partido teriam se gabado de ter ameaçado Hoyle de retirá-lo do cargo na próxima eleição geral, esperada para este ano, se ele se recusasse a atender às suas demandas.11

A oposição do Partido Trabalhista ao cessar-fogo 

A recusa dos trabalhistas em apelar claramente pelo cessar-fogo vai totalmente contra as opiniões de seus próprios apoiadores. Em fevereiro, de acordo com a YouGov, 83% dos eleitores que votaram no Partido Trabalhista na última eleição geral queriam que Israel encerrasse sua campanha militar; apenas 3% deles se declararam a favor da continuação das operações. A obstinação de Starmer em apoiar a guerra de Netanyahu deriva de sua recusa em distinguir a luta contra o antissemitismo do apoio a Tel Aviv, pois a associação da defesa dos direitos dos palestinos à hostilidade aos judeus tem sido usada por ele para marginalizar a esquerda de seu partido desde que assumiu a liderança, em 2020. No entanto, essa arma de luta interna se torna um grande problema político na perspectiva das eleições gerais.

Apesar de uma violência contínua, marcada por atrozes crimes de guerra, estar assolando os civis palestinos há seis meses, os dois principais partidos britânicos permanecem firmes em sua defesa de Israel. E, embora figuras políticas tão importantes quanto o conservador Nicholas Soames, membro da Câmara dos Lordes, e o prefeito trabalhista de Londres, Sadiq Khan, agora estejam pedindo o fim das vendas de armas, Sunak e Starmer ainda afirmam, neste momento, que o Reino Unido deve continuar a apoiar o esforço de guerra israelense. Mesmo que essa posição evolua nas próximas semanas, ambos terão causado danos irreparáveis à sua reputação, bem como à credibilidade diplomática de seu país.

 

*Daniel Finn é jornalista 

 

1 Patrick Wintour, “Majority of voters in UK back banning arms sales to Israel, poll finds” [Maioria dos eleitores no Reino Unido apoia proibição de vendas de armas a Israel, aponta pesquisa], The Guardian, Londres, 3 abr. 2024. Cf. Matthew Smith, “Israel-Palestine: fundamental attitudes to the conflict among Western Europeans” [Israel-Palestina: atitudes fundamentais para o conflito entre europeus ocidentais], 20 dez. 2023; e “British attitudes to the Israel-Gaza conflict: February 2024 update” [Atitudes britânicas em relação ao conflito Israel-Gaza: atualização de fevereiro de 2024], 15 fev. 2024, https://yougov.co.uk.

2 Alex Barton, “Former supreme court judges say UK arming Israel breaches international law” [Ex-juízes da Suprema Corte dizem que o Reino Unido armar Israel viola o direito internacional], The Telegraph, Londres, 4 abr. 2024. 

3 Rajeev Syal e Aubrey Allegretti, “Waving Palestinian flag may be a criminal offence, Braverman tells police” [Agitar bandeira palestina pode ser crime, diz Braverman à polícia], The Guardian, 10 out. 2023.

4 Haroon Siddique, “Police accused of stifling protest after Manchester arrest over Palestine chant” [Polícia acusada de reprimir protestos após prisão em Manchester por cântico sobre a Palestina], The Guardian, 21 mar. 2024.

5 Nandini Naira Archer, “Arrest rate at “openly criminal” Palestine protests is lower than Glastonbury” [Taxa de prisão em protestos “abertamente criminosos” pela Palestina é menor do que no festival de Glastonbury], 7 fev. 2024, www.opendemocracy.net.

6 Ben Reiff, “A “no-go zone” for Jews? The making of a moral panic in London” [Uma “zona proibida” para judeus? A fabricação de um pânico moral em Londres], 13 mar. 2024, www.972mag.com.

7 Poppy Wood, “Donelan asked to explain secret dossier on academics after libel case” [Donelan solicitada a explicar dossiê secreto sobre acadêmicos após caso de difamação], 8 mar. 2024, https://inews.co.uk.

8 Nadeem Badshah, “Archbishops of Canterbury and York warn against new extremism definition” [Arcebispos de Canterbury e York alertam contra nova definição de extremismo], The Guardian, 12 mar. 2024; Peter Oborne, “UK extremism: Michael Gove is turning British Muslims into an enemy within” [Extremismo no Reino Unido: Michael Gove está transformando muçulmanos britânicos em inimigos internos], 19 mar. 2024, www.middleeasteye.net

9 Elizabeth Short, “‘Profoundly anti-democratic and repressive’” [“Profundamente antidemocrático e repressivo”], The Morning Star, Londres, 12 mar. 2024.

10 Alexandra Rogers, “Sir Keir Starmer seeks to clarify Gaza remarks following backlash from Labour councillors” [Sir Keir Starmer busca esclarecer comentários sobre Gaza após reação de conselheiros trabalhistas], 20 out. 2023, https://news.sky.com.

11 Xander Elliards, “Labour ‘threatened Lindsay Hoyle’s job’ before Gaza motion rule change” [Trabalhistas “ameaçaram o emprego de Lindsay Hoyle” antes da mudança de regra sobre a moção de Gaza], The National, Glasgow, 21 fev. 2024.

Fonte:Le Monde Diplomatique Brasil