Após uma moratória de vinte anos, a República Democrática do Congo restabeleceu em 15 de março a pena de morte, especialmente para militares acusados de traição e para “criminosos urbanos”. Destinada a fortalecer a autoridade do Estado, essa medida é na verdade o reconhecimento de uma impotência. Desde sua independência, em 1960, a RDC sofre com a exploração de seus líderes e a cobiça de seus vizinhos

Tropas do Movimento 23 de Março (Foto: Wikimedia Commons)





Um recorde para esse país em guerra desde 1997: o número de deslocados internos na República Democrática do Congo (RDC) atingiu 7 milhões no fim de 2023.1 A sucessão de conflitos também fez milhões de vítimas. O número exato ainda é incerto, mas apenas a guerra no leste do país, entre agosto de 1998 e dezembro de 2002, matou direta ou indiretamente 3 milhões de pessoas, segundo o International Rescue Committee (IRC).2 Em mais de sessenta anos, a RDC nunca experimentou paz e estabilidade duradouras. As condições em que essa antiga colônia belga alcançou a independência em 1960, bem como o modelo de desenvolvimento escolhido por seus líderes, explicam a fragilidade intrínseca do Estado e as tensões que o dilaceram.




Após o assassinato do primeiro-ministro Patrice Lumumba pelos serviços secretos belgas e norte-americanos em 1961, o longo governo de Joseph Mobutu Sese Seko (1965-1997), apoiado pelo Ocidente, instalou no país, renomeado Zaire em 1971, uma economia rentista, corrupta, predatória e desigual, da qual o gigante da África Central ainda não se libertou. Apesar das abundantes riquezas naturais (51% das reservas mundiais de cobalto, 31% do diamante industrial, 6% do diamante de qualidade gemológica, 9% do tântalo), a RDC estava no grupo dos países mais pobres e endividados no início dos anos 1990, enquanto a fortuna pessoal de seu presidente ultrapassava os US$ 4 bilhões.3 Com a partida dos colonizadores belgas, as novas elites nacionais pretendiam fazer do país o “Brasil africano”, tendo como carro-chefe a Générale des Carrières et des Mines (Gécamines), resultante da nacionalização da Union Minière du Haut-Katanga (UMHK). Vítima da exploração do presidente Mobutu e de sua família, que retiraram dinheiro da empresa conforme suas necessidades pessoais, ela continuou a perder dinheiro até ser privatizada em 2008, por exigência das instituições financeiras internacionais.4

Nunca devidamente administrado, o Zaire – que se tornou RDC em 1997 – continua sendo um Estado frágil, incapaz de cumprir suas funções básicas, especialmente garantir sua segurança interna e externa. Essa deficiência é agravada pelo tamanho excepcional do país: 2.345.400 quilômetros quadrados, equivalente a metade da União Europeia e quatro vezes a França. O final errático do governo de Mobutu precipitou o país no caos, com múltiplas revoltas. Os militares saquearam a capital, Kinshasa, em 1991. A falta de uma saída política democrática radicalizou gradualmente os atores sociais, alguns dos quais se envolveram na luta armada. E o genocídio dos tútsis no vizinho Ruanda entre abril e julho de 1994 deu à crise uma dimensão regional: refugiados, grupos armados perseguindo assassinos e criminosos em fuga encontravam no Zaire um refúgio ou um campo de batalha.

Foi nesse contexto que surgiu, em 1996, uma rebelião militar. Apoiada por Ruanda e Uganda, liderada por Laurent-Désiré Kabila, a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo (AFDL) derrubou Mobutu em 1997. No entanto, o alívio provocado pela queda do ditador – que morreria em Rabat em setembro do mesmo ano – não durou. O novo governo “de salvação pública” se voltou para o autoritarismo ao mesmo tempo que se libertou dos Estados vizinhos. Assim, Ruanda e Uganda instigaram uma segunda rebelião (1998-2003), orquestrada pelo Reagrupamento Congolês para a Democracia (RCD) e pelo Movimento para a Libertação do Congo (MLC), para derrubar Kabila. Oito países – Angola, Burundi, Chade, Namíbia, Ruanda, Sudão, Uganda e Zimbábue – participaram diretamente ou por meio de uma multiplicidade de grupos armados.5 Os objetivos políticos se misturaram à ganância e à cobiça em relação às reservas minerais da RDC.

No leste, grupos armados, minas e refugiados (Fontes: Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), abr. 2024; Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (Monusco); IPIS, “Car- te de l’exploitation minière artisa- nale dans l’est de la Rép. dém. du Congo” (dados 2019-2023); Ar- med Conflict Location & Event Data Project (ACLED), abr. 2024.)

 

Sob a pressão de grupos armados

Atualmente, a região mais afetada pela insegurança e pela guerra continua sendo o Kivu, na fronteira com Uganda e Ruanda. É nessa província do leste que encontramos as Forças Democráticas Aliadas (ADF) – de origem ugandense, aliadas à Organização do Estado Islâmico (OEI) desde 2017 –, que buscam impor a lei islâmica nessa parte da RDC; as Forças Democráticas de Libertação de Ruanda (FDLR), que defendem os interesses dos hútus ruandeses refugiados na RDC e se opõem ao regime do presidente ruandês, Paul Kagame; milícias étnicas, como os Maï-Maï, os Banyamulenge e os Interahamwe, que afirmam proteger sua comunidade hútu; e traficantes de todas as ordens, bem como contrabandistas e caçadores ilegais que exterminam a fauna e saqueiam áreas de mineração artesanais. Com seus aliados da Aliança do Rio Congo (AFC), criada em 2023 e apoiada por Ruanda, o Movimento 23 de Março (M23) também ocupa grandes áreas da província: o grupo rebelde cometeu inúmeras atrocidades desde sua criação em 2012 e retomou as armas em novembro de 2021, apesar do acordo de paz assinado com a RDC em 12 de dezembro de 2013 em Nairóbi. 

O leste do país é palco de inúmeros crimes e violações dos direitos humanos.6 Em algumas localidades, comunidades inteiras foram deslocadas à força por grupos armados que buscam controlar áreas ricas em recursos ou rotas de acesso a essas áreas, seja para financiar a compra de armas, para enriquecimento pessoal ou em nome das grandes multinacionais que recorrem a intermediários para comprar minerais das milícias. As populações locais também podem ser usadas como mão de obra forçada para explorar minerais. As Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) também são regularmente acusadas de crimes. Crianças soldados são recrutadas: em 2018, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) contabilizou entre 5 mil e 10 mil apenas na região de Casai. A violência sexual é regularmente usada como arma de guerra para aterrorizar comunidades, forçá-las a aceitar seu controle ou puni-las por suposta ajuda às forças adversárias.

Congo ekobonga te” [O Congo jamais sairá do buraco em que se encontra].7 A frase é frequentemente ouvida em Kinshasa. Nunca mesmo? Sair dessa situação exige uma resposta global e local, coordenada e blindada de preferências partidárias entre todos os atores diretos e indiretos dos conflitos na RDC. Os principais pontos seriam desmilitarização de toda a zona, diálogo entre os beligerantes e a assinatura de um plano de pacificação, esclarecendo os status das comunidades e organizando a desmobilização, a reconversão e a reinstalação de milicianos e crianças soldados. As chancelarias ocidentais teriam a ganhar ao apoiar tal iniciativa, para dissipar a suspeita de se beneficiarem da desordem. Porque, de qualquer forma, a era imperial acabou. A Igreja Católica, muito envolvida na política local desde o fim dos anos 1950,8 também poderia contribuir para a paz e a reconciliação.

 

*Rodrigue Nana Ngassam é doutor em Ciência Política (Universidade de Douala), pesquisador associado ao Instituto de Pesquisa em Geopolítica e Estudos Estratégicos de Kinshasa (Irges) e membro da Academia de Geopolítica de Paris.

 

Seis décadas de conflito

1996-1997: Primeira Guerra do Congo.

No leste do Zaire, confrontos entre refugiados hútus ruandeses e tútsis banyamulenges que já estavam em luta contra o governo de Joseph Mobutu Sese Seko. Apoiada por Ruanda e Uganda, a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo (AFDL), de Laurent-Désiré Kabila, unifica os grupos rebeldes.

17 de maio de 1997: a AFDL derruba Mobutu. O Zaire torna-se a República Democrática do Congo (RDC).

2 de agosto de 1998 a 31 de dezembro de 2002: Segunda Guerra do Congo.

O presidente Kabila expulsa as tropas ruandesas e ugandenses. Ruanda, apoiado pelo Burundi, arma os rebeldes do Movimento de Libertação do Congo (MLC). Zimbábue, Namíbia, Chade, Líbia, Sudão e Angola apoiam a RDC.

6 de setembro de 2002: acordo de paz de Luanda entre a RDC e Uganda.

16-17 de dezembro de 2002: acordo de Pretória entre a RDC e Ruanda. Fim oficial da Segunda Guerra do Congo.

Desde 2004: Guerra do Kivu. Grupos rebeldes ruandeses (Forças Democráticas de Libertação de Ruanda, FDLR) e congoleses (Forças Armadas da República Democrática do Congo, FARDC) e o Congresso Nacional para a Defesa do Povo (CNDP) lutam pelo controle dos recursos minerais do Kivu.

2012-2013: formados no Movimento 23 de Março (M23), soldados do CNDP se amotinam e são finalmente derrotados pelas FARDC.

Desde 2016: um grupo rebelde de Casai, os partidários de Kamwina Nsapu, se opõe ao governo central.

Desde março de 2022: nova ofensiva do M23.

(Cronologia realizada por Gabrielle Bellay Povia.)

 

1 “Près de 7 millions de personnes déplacées en RDC: un record” [Quase 7 milhões de pessoas deslocadas na RDC: um recorde], Organização Internacional para as Migrações, 30 out. 2023, www.iom.int.

2 Benjamin Coghlan et al., “Mortality in the Democratic Republic of the Congo: results from a nationwide survey” [Mortalidade na República Democrática do Congo: resultados de uma pesquisa nacional], The Lancet, v.367, n.9504, Londres, 7 jan. 2006.

3 Pierre Jacquemot, “L’économie politique des conflits en République démocratique du Congo” [A economia política dos conflitos na República Democrática do Congo], Afrique Contemporaine, v.2, n.230, Paris, jul. 2009.

4 Benjamin Rubbers, “L’effondrement de la Générale des carrières et des mines. Chronique d’un processus de privatisation informelle” [O colapso da Générale des Carrières et des Mines. Crônica de um processo de privatização informal], Cahiers d’Études Africaines, n.181, Paris, 2006.

5 “La ‘Grande guerre africaine’, une page difficile à tourner pour le Congo-Kinshasa” [A ‘Grande Guerra Africana’, uma página difícil de virar para o Congo-Kinshasa], Diplomatie, n.95, Paris, 18 mar. 2019.

6 “Principales tendances des violations des droits de l’homme en RDC – Janvier 2024” [Principais tendências de violações dos direitos humanos na RDC – Janeiro de 2024], Missão das Nações Unidas para a Estabilização na RDC (Monusco), 21 mar. 2024.

7 Pierre Jacquemot, “Le Rwanda et la République démocratique du Congo. David et Goliath dans les Grands Lacs” [Ruanda e República Democrática do Congo. Davi e Golias nos Grandes Lagos], Revue Internationale et Stratégique, v.3, n.95, Paris, 2014.

8 Ler François Misser, “L’Église congolaise contre Kabila” [A Igreja congolesa contra Kabila], Le Monde Diplomatique, abr. 2018.

Fonte:Le Monde Diplomatique Brasil