Vincent Moon é um cineasta francês; Guy Veloso é um fotógrafo brasileiro. Ambos são ávidos pesquisadores cosmopolitas e, entre o físico e o espiritual, investigam o transe como passagem para os mistérios da vida
Rituais sufis na Chechênia, um funeral na Indonésia, festividades religiosas na Tailândia e na Etiópia, além de uma coleção de canções ancestrais da Rússia de fazer inveja em qualquer antropólogo. Seus olhos já viram mais coisas do que pode sonhar a nossa vã filosofia e seus pés já percorreram mais caminhos que muito explorador renomado por aí. O diretor francês Vincent Moon (nascido Mathieu Saura, na cidade de Paris em 1979) é o perfeito exemplo de nômade contemporâneo. Alguém com disposição para percorrer os quatro cantos do planeta fazendo não apenas o que ama, mas aquilo que aparentemente nasceu para fazer.
Captar o mundo: esse parece ter sido o objetivo dos artistas desde o princípio do mesmo. Através de palavras, da música, da encenação ou de tudo isso junto. Mostrar o globo, abordando diferentes perspectivas, sempre com sensibilidade e proximidade. Foi com esse espírito que Vincent Moon, junto com Chryde (Christophe Abric) criou a série A Take Away Show para o site La Blogothèque, um lugar onde cinema, música e espaço público se uniram de maneira a causar uma verdadeira revolução audiovisual. Foi para esse projeto que o então apaixonado por indie rock filmou bandas como Arcade Fire, Beirut, R.E.M., The National e Bon Iver, entre muitos outros, influenciando assim uma geração de diretores ao redor do mundo. Depois, vieram outras iniciativas, sempre com um pequeno e seleto grupo de pessoas envolvidas, resultando em filmes e documentários como Esperando el tsunami, Obá, obá, obá (sobre a música de Jorge Ben Jor feito em parceria com Pierre Barouh, diretor do aclamado Saravah, de 1969) e o belíssimo An Island, feito sob encomenda para a banda dinamarquesa Efterklang.
Atualmente, o francês escolheu o Brasil como casa provisória. Híbridos é o seu novo filme e está sendo feito com a luxuosa colaboração da escritora, fotógrafa, documentarista, aventureira e namorada, Priscilla Telmon. Nele, a dupla explora de maneira muito íntima os mistérios que cercam os ritos e cultos religiosos por todo o país, documentando festas e cerimônias da umbanda, candomblé, das religiões adeptas do uso da ayahuasca e de muitas outras que compõem a nossa cartografia espiritual. “Comecei a pensar nesse projeto há cerca de dois anos. Na segunda vez que estive no Brasil, eu estava muito frustrado, porque não tive tempo suficiente para pesquisar mais sobre o candomblé, sobre a umbanda e esses temas são muito fascinantes e excitantes para mim. Então, disse a mim mesmo que iria voltar e fazer um projeto realmente grande. O Brasil é um grande país religioso, é o país do sagrado hoje no mundo”, conta o diretor, enquanto relembra as suas primeiras experiências filmando cerimônias de umbanda na Amazônia.
DO OUTRO LADO
O transe como chave para abrir as portas de onde estão guardados os mistérios desta vida ou do que está além dela é um tema quase ultrapassado, já que hoje ele é um fenômeno que se sustenta sozinho, não sendo mais visto como apenas um meio ou um caminho para chegar a algo ou a algum lugar, seja terreno ou espiritual.
O fotógrafo Guy Veloso, que há vários anos se dedica a registrar cultos e festividades religiosas Brasil afora, reconhece no transe uma complexidade que escapa às palavras e que, por isso mesmo, ele tenta transmitir por meio de imagens captadas em momentos de verdadeiro fervor. “Um dos motivos que mais fotografo é esse momento limite entre o real e o irreal. Durante o Círio de Nazaré, em Belém do Pará, por exemplo, as pessoas vão conduzindo uma corda de navio de 500 metros. São mais de 10 mil pessoas se acotovelando no calor de 40 graus da Amazônia e eu percebo que há momentos em que muitas delas entram em êxtase, talvez causado pelo calor e pela sede. Elas entram em um estado alterado de consciência, que é quando mais gosto de fotografá-las”, relata de maneira entusiasmada o artista homenageado do 33º Arte Pará, em 2014.
Existem vestígios de que o fenômeno do transe faz parte da vida do homem há pelo menos 30 mil anos. Naquilo que hoje conhecemos como ritos xamânicos, os nossos ancestrais já recorriam às experiências místicas em busca de transcendência. Para Moon, “falar sobre transe é falar sobre a habilidade de ser humilde, de entender que há algo maior que você, algo que você nunca conseguirá entender com o seu cérebro. É sobre se comunicar em outro nível; é sobre energias que transcendem e fluem sobre você”.
Sem pretensão nenhuma de seguir os passos de um Pierre Verger (1902-1996) ou de um Roger Bastide (1898-1974) e ser o próximo grande pesquisador religioso francês, Vincent Moon permanece em sua jornada em ritmo alucinante. O roteiro de suas andanças é difícil de traçar. Seus horários parecem humanamente impossíveis em primeira instância.Se em um dia está no Pará, no seguinte está no Rio de Janeiro e, quando pensamos que no próximo dia ele estará em algum lugar como Minas Gerais, ele já partiu para o Japão. O que ele foi fazer? Foi viver, ou melhor, foi filmar, já que costuma dizer que não vê um limite entre cinema e cotidiano em sua vida particular. “É tudo muito confuso, essas duas coisas se completam. Nunca faço muito dinheiro com isso, vivo com muito pouca grana. Vivo de cinema, mas não do dinheiro dele. Não é um trabalho ou uma missão, é o meu único modo de vida, eu não saberia como viver sem isso, entende? Não se trata do resultado que isso vai me dar, mas do fazer.”
ETNOGRAFIA EXPERIMENTAL
Junto ao faro para as micropoéticas e à intuição aguçada, o cineasta viajante traz em si vontade e disposição para fazer coisas de maneira nada convencional, o que o levou a criar uma estética muito particular à qual deu o nome de “etnografia experimental”. Seus filmes são verdadeiras aulas não apenas de cinema, mas também de sensibilidade. Há neles ares de poesia, de documentário etnográfico e show de música, mesmo não sendo nada disso – ou sendo tudo isso e mais um pouco.
Seus esforços não são direcionados para criar grandes produções ou pastiches que possam ser facilmente consumidos, eles se voltam para a exposição da vida cotidiana, para aquela grandiosidade que se disfarça e se esconde nas dobras dos acontecimentos comuns. Talvez o seu maior diferencial seja justamente a ruptura com a visão de que o espectador é alguém que precisa ser educado e instruído, alguém que tem a necessidade de ser guiado pela mão generosa do diretor. “A ideia não é lidar com informação, mas sim com imaginação, com como você pode criar uma forma de arte que não vai explicar nada. O intuito desse cinema-transe, desse cinema híbrido, não é dar algo sobre o qual você possa pensar, mas oferecer oportunidade e espaço para que você possa abrir sua mente. Esse projeto também é sobre reconhecer os limites da humanidade”, pontua.
Nessa estética, o movimento tem papel fundamental. Levando o espectador a caminhar com ele pelos cenários, a experimentar o que está sendo mostrado ali como se a câmera fosse uma extensão de seus corpos. Ao fazer isso, Vincent Moon dá oportunidade para que cada um sinta e tire suas próprias conclusões do que está vendo. “O que procuro é não apenas assistir aos rituais, mas participar deles o máximo possível, estar presente e ao mesmo tempo estar invisível para as pessoas. Entrar em harmonia com o momento é um processo muito excitante pra mim.”
Pensando por esse viés, o que Guy Veloso faz é também uma etnografia experimental, como aponta o próprio: “Não sou um estranho nos lugares onde fotografo. Não uso zoom, fotografo apenas com 35mm e por isso preciso estar muito próximo a eles o tempo todo e mesmo assim eles não notam minha presença. Além do mais, tem algo que ainda não havia contado a ninguém: rezo junto com eles. Participo, mesmo”. Dessa forma o mistério do transe parece unir pessoas aparentemente distantes, sem fortes ligações umas com as outras a não ser o interesse naquilo que está além do que se pode compreender.
Com previsão de lançamento para o ano que vem, Híbridos se desdobrará em exposições, livro e filmes (sim, no plural), além de um longa que será exibido em festivais pelo mundo, como explica o dedicado e incansável diretor: “Vamos criar websites nos quais disponibilizaremos as gravações, fazer um filme curto para cada ritual filmado, o que vai dar cerca de 60 ou 70 filmes, e vamos lançar também CDs, vinis, livros e assim por diante. Acredito que Híbridos não é apenas sobre espiritualidade e cinema, mas sobre o tipo de cinema que podemos fazer nos dias de hoje. É um momento muito excitante para a criação em termos de explorar diferentes formatos”. Quando questionado sobre a importância de sua permanência por tanto tempo em um país, coisa inédita até então, o nômade de personalidade tímida revela: “Fazer esse filme tem sido uma experiência muito pessoal, muito íntima. Não sei quais serão os resultados, mas posso dizer que esse projeto mudou a minha vida”. Ninguém sabe qual será a próxima parada, o próximo voo e o próximo pouso, mas o convite para embarcar nessas viagens visuais e sonoras está sempre aberto.
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