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| População comemora golpe de 1964 em frente ao Palácio do Guanabara, no Rio de Janeiro |
O curta que passava no escurinho do cinema, antes dos melhores filmes
da MGM, Columbia e Paramount, considerado como jornalístico, mostrava
pessoas vindo em bondes para o comício da Central do Brasil, em 13 de
março de 1964.
A narração comentava a desordem que se causava: “Uma claque foi
trazida para engrossar a multidão e fazer com que as manifestações
parecessem espontânea. Os oradores eram comunistas ou da esquerda
radical, o discurso era reformista, mas seu objetivo era causar o
tumulto e destruição, um velho truque comunista. Pessoas confusas são
presas fáceis.”
E em seguida denunciava: “No Rio, espiões da chamada República
Popular da China foram detidos. Evidências de uma conspiração para
assassinar líderes democráticos do Brasil foram descobertas.”
Para esse noticiário, reproduzido nas melhores salas brasileiras e
latino-americanas, o clima de caos se reproduzia também no seio das
próprias Forças Armadas: “Marinheiros mais à esquerda e ligados à
Associação da Marinha se trancaram no prédio da União Metalúrgica.
Almirantes no Clube Naval concluíram que esse era um esforço para
dividir as forças armadas em diferentes campos, outro velho truque
comunista.”
Finalmente o newsreel (nome dado aos filmes jornalísticos curtos exibidos no cinema) chamado
de “Vitória da Democracia”, transmitido em maio de 1964, apresentava o
desfecho feliz: "As pessoas saíram na rua para celebrar o fim de uma era
de incerteza e medo. Por quatro anos, eles sofreram com uma espiral
inflacionária, alarmantes greves de trabalhadores, e promessas vagas e
não cumpridas. Agora a nação parece tomar uma nova direção e uma nova
esperança. Meio milhão de pessoas, de todos os níveis sociais, se
reuniram em uma Marcha com Deus e pela Liberdade, demonstrando um
solene, mas não menos apaixonado, pedido por mudança - por meio de
processos democráticos”.
Com a bandeira brasileira ao fundo, no seu encerramento, o filme
descrevia a festa popular e os desafios futuros: “E tinha chuva de papel
picado e serpentinas nas ruas do Rio. Uma Marcha da Família, com Deus e
pela Liberdade, previamente agendada, se transformou em uma
manifestação da vitória, outra demonstração espontânea do apoio popular à
mudança, e uma volta ao curso natural da Nação. Mas ainda há muito a
ser feito. O Congresso elegeu Umberto [sic] de Castelo Branco, para
cumprir o mandato restante e liderar a nação nos desafios que se impõem a
seguir. O povo está determinado que esse deve ser um grande ponto de
mutação na sua história.”
O roteiro desse filme, assim como sua versão em espanhol, foram
encontrados por mim depois de 50 anos de sua exibição, nos arquivos do
governo norte-americano em College Park, em Maryland, entre as produções
do departamento de filmes da Agência de Informação dos Estados Unidos
(USIA), em sua divisão para América Latina. Particularmente, foi o
primeiro filme confeccionado pela USIA para narrar o que teria sido uma
revolução democrática no Brasil.
O governo americano, mais fortemente a partir de 1953 com a
criação da USIA, sabia que a opinião pública e a aliança com os meios de
comunicação de massa brasileiros eram decisivos como complementos das
ações políticas que poderiam definir os rumos do País. Muito além do
respaldo político, militar e jurídico, foi decisiva a mobilização da
opinião pública brasileira.
Os fatos políticos e argumentos jurídicos se complementavam com a
cobertura dos grandes meios de comunicação brasileiros em favor da
deposição do presidente João Goulart (1961-1964) e a tudo o que ele
representava. Os americanos já sabiam isso pelo menos desde a década de 50.
Atualmente, o juiz responsável pela Operação Lava-Jato, Sérgio Moro, também compreendeu muito bem isso.
É o que ele faz questão de declarar em eventos públicos, seja os
organizados pelo grupo Lide, pelas organizações Globo ou em sua rasa
análise sobre as estratégias e desdobramentos da Operações Mãos Limpas
na Itália. Sem a opinião pública a seu favor, seu trabalho não seria tão
eficiente.
A partir dos acontecimentos do 13 de março de 1964 e do golpe
consolidado em 1º de abril, o Dia da Mentira do Brasil, a cobertura da
grande imprensa brasileira justificava a “revolução” civil-militar como
uma vitória da “democracia brasileira”.
Os jornalistas, historiadores de dia seguinte, reproduziram essas
histórias, seja por convicção política própria, ou incorporando a linha
editorial determinada pelas famílias que dominavam e dominam as grandes corporações de comunicação do Brasil: a Folha, o Estado, o Globo e, naquela época, os Diários Associados.
Esses grandes grupos e as histórias contadas imediatamente por eles
para justificar o golpe de então também amplificavam uma agenda política
clara, por detrás de sua histórias. Iam contra a incorporação das
defendidas por Jango, como a reforma urbana, reforma agrária e a
manutenção da Petrobrás como patrimônio público brasileiro (demandas que
poderiam ser incorporadas pela nossa presidenta, por sinal).
Hoje em dia, a agenda oculta também deixa alguns sinais. Nas
primeiras marolas de instabilidade política do governo, especuladores
causam oscilações nas bolsas de valores brasileiras, e congressistas
propõem reformas para a exploração privada do pré-sal.
Além disso, a parceria entre os grandes grupos de comunicação
do Brasil e USIA se dava também de maneira direta, por meio de contratos
secretos, como o que pagava mensalmente pessoalmente a Assis Chateaubriand
(chefe dos Diários Associados) pelo menos 12 mil dólares mensais, para
reprodução dos filmes, programas de rádio e notícias de jornal (na sua
maioria, apócrifas), ao longo dos anos 50, como mostra o documento
exibido.
Nas ocasiões em que o pagamento atrasava, Chateaubriand deixava claro
ao governo americano que ele continuaria a noticiar os conteúdos
indicados, “por sua própria conta, se necessário, porque considera[va] a
eficiência do programa, de suma importância”.
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| Classificação de jornais e revistas não-comunistas no Brasil em
documento norte-americano de 1958. Crédito: Nara II, RG 306,
Declassified NND 988085, Records of the United States Information
Agency, Office of Research and Analysis; Research Notes; 1958-1962,
1958: RN-1 THRU 1958: RN-58, Stack area 230, Row 046, compartment 36,
Shelf 02 - , Entry A1-1029, Box 1, ARC# 1074117, "RN-6-58,
Selected List of Important Non-Communist Newspapers and Magazines in
Latin America, January 27, 1958".
O próprio governo norte-americano identificava as orientações
políticas dos grandes grupos: O Globo era “pró-americano, anticomunista,
conservador, influente”, O Estado de S. Paulo e a então Folha da Manhã
eram “pró-EUA, anticomunista e conservador”. Por isso, mesmo sem o
possível apoio da USIA, eles provavelmente continuariam a impor suas
linhas editoriais à opinião pública brasileira. Como fazem até hoje.
Os motivos dessa cobertura conservadora, pró-americana e
anticomunista, segundo uma própria pesquisa encomendada pela USIA em
abril de 1964, intitulada Como os profissionais da mídia de massa
afetam o processo político e porque eles agem dessa maneira para
alcançar o efeito desejado era simples, e ainda extremamente atual:
“Os jornais politicamente importantes do Brasil não são instituições
impessoais. A maioria reflete suas opiniões gerais de acordo com a
posição de seu dono, que circula entre os círculos sociais mais altos. O
resultado disso é que as ideias são normalmente as clássicas liberais,
ao invés das marxistas, e os seus interesses normalmente são
conservadores, ao invés de revolucionários. Os jornalistas são
independentes até onde o diretor permitir”.
Ainda dominantes no oligopólio dos meios de comunicação até hoje, os
mesmos grupos e suas histórias são combatidos desigualmente por jornais,
blogs e revistas, que tentando equilibrar as visões da grande imprensa,
por seu lado muitas vezes desequilibram suas análises, também parciais.
O importante é notar que as histórias cotidianas dos jornais somente
foram devidamente confrontadas pelo tempo e pela análise histórica mais
distanciada, após duros anos de ditadura, infinitas violações de
direitos humanos e sociais e depredação dos patrimônios nacionais pelos
donos de poder nacionais e internacionais.
O poder político imediato da imprensa e de suas grandes corporações
ainda continua no Brasil, refletindo grandes interesses e valores
pequenos das famílias que dominam os meios de comunicações e influenciam
a opinião pública brasileira. Essa é uma discussão chave que não pode
ser mais ignorada pelos grupos políticos que pretendem revolucionar o
país. Morou?
*Fernando Santomauro é membro do GR-RI, doutor em Relações
Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (PUC-SP, Unesp e Unicamp),
Coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura de Guarulhos, e
autor do livro A Atuação Política da Agência de Informação dos Estados
Unidos no Brasil (1953-1964), a ser lançado pela Editora Unesp em 2016.
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