ENTREVISTA

Entrevista exclusiva com o Dr. James Houston: "Enxergar novos horizontes requer certas providências. A desinstitucionalização da fé é o novo grande empreendimento do Cristianismo. O que penso é que os cristãos deveriam se emancipar de suas denominações."

  Escrito por 

 
Um ancião que ainda clama
DR.JAMES HOUSTON
Por telefone – fixo, é claro –, tenta-se marcar uma entrevista. A esperança é conseguir espaço na agenda de um ativo senhor de 93 anos, que não atende pelos títulos de pastor ou teólogo, mas que há décadas é uma das vozes mais relevantes no meio evangélico internacional. Jim (James) Houston atende, ouve o pedido e responde, docemente: “Você pode vir amanhã às oito? Podemos tomar o café da manhã juntos”. O acesso fácil ao concorrido teólogo, geógrafo e pregador James Houston, fundador do renomado Regent College, em Vancouver (Canadá), e autor de diversos livros cristãos que influenciam gerações de crentes, não é sorte e nem milagre. Na verdade, refeições com alunos, professores e amigos de todo o mundo são uma marca do ministério do ainda professor e palestrante.
No dia seguinte, a reportagem chega à oito horas e sete minutos da manhã na porta do prédio onde Houston vive sozinho e completamente independente. O senhor de hábitos britânicos desce, abre a porta, oferece vaga na garagem e lembra ao entrevistador brasileiro que ele está atrasado, ao dizer: “Como você não chegava, não sabia mais se vinha”. Deixados os sete minutos de lado, da porta do apartamento já dava para ver uma mesa semi-arrumada. Houston pede uns minutos, oferece uma visita à varanda – com direito à brisa e uma bela vista de Vancouver – e dá início uma detalhada composição da mesa. Louças impecáveis, café e croissants frescos mostram que a hospitalidade é um hábito bem treinado ao longo de décadas.
A conversa começa diante de um homem cuja virtude, confirmada por quase todos que ficam diante dele, é dar aos seus interlocutores a certeza de que está sendo atentamente ouvido. Houston atendeu CRISTIANISMO HOJE com exclusividade, nos dias que antecederam uma nova visita ao Brasil. Nesta conversa de varanda, Houston fala sobre espiritualidade, oração, relacionamentos – temas com os quais conviveu ao longo da vida ministerial e que fizeram dele um dos mestres mais requisitados – e queridos – da Palavra de Deus nas últimas décadas. 
CRISTIANISMO HOJE – Suas áreas de estudo incluem a oração, a espiritualidade e a formação espiritual. Quais as conexões entre elas?
JAMES HOUSTON – Quando eu estava na universidade, em Oxford, decidi ser um tipo específico de geógrafo, estudando o que se pode chamar de história das ideias. Isso me permitiu entender como as ideias e identidades surgiam num determinado período da história ou num determinado grupo étnico. Mas minha paixão era buscar entender a identidade de um discípulo de Cristo em vários ambientes. Qual o caráter de Pedro no primeiro século? Qual o caráter de Bernardo de Claraval ou de João Calvino? Diante de um calvinismo ou de um movimento de espiritismo, por exemplo, precisamos dissecá-los para entendê-los.
O senhor já esteve algumas vezes no Brasil. O que pensa da espiritualidade dos cristãos brasileiros? 
Existe uma nova espiritualidade, não apenas no Brasil, mas em muitas outras partes o mundo. No específico caso brasileiro, precisamos dissecar o que é essa nova espiritualidade, descobrir porque a teologia da prosperidade é tão atraente às classes médias e populares e entender o Evangelho numa cultura que tem particularidades únicas – como o fato de ter se livrado tão tarde da escravidão. É preciso desenvolver uma história das ideias do Brasil, e então vamos entender melhor o que está no DNA brasileiro.
No Brasil, algumas denominações, especialmente as neopentecostais ou pós-pentecostais, cresceram bastante com uma pregação baseada na prosperidade material. Ela é ou não um termômetro da bênção de Deus?
Essa uma meia-verdade, não toda a verdade. Por isso, a Teologia da Libertação está morrendo hoje. Sim, nós precisamos libertar os cativos. Mas libertá-los de qual maneira? Socialmente? Espiritualmente? Se a proposta é uma libertação apenas social, e não espiritual, é um erro. Há esperança. Há grande potencial de, num ambiente de pobreza, anunciar o Evangelho para o pobre. Temos que libertar da pobreza e anunciar o Evangelho, mas o último é mais importante. Do contrário, seremos inconsistentes. Penso que, para aqueles que vivem na pobreza, será certamente muito mais fácil clamar por Deus do que é para os ricos. Jesus diz que é muito difícil para o rico entrar no Reino dos céus. No entanto, você pode ter pessoas ricas e espiritualmente devotas a Deus, que não usam suas riquezas para si mesmas. Havia uma riquíssima viúva em Roma que mantinha correspondência com Agostinho. Numa das cartas, ela pediu a ele, muito humildemente, que lhe ensinasse o que pedir em oração. Não é maravilhoso ver uma pessoa rica e tão pura?
Apesar das muitas críticas, uma quantidade considerável de cristãos preferem agir como Gamaliel, dizendo que devemos deixar essas igrejas crescerem e apenas no futuro avaliar se esse movimento provém de Deus ou não. Isso pode ser perigoso?
Eu acho que devemos dar uma olhada no Evangelho de João. Ele está sempre falando da ideia de multidão. Ora, a multidão é instável, é superficial. A ideia de estar na multidão significa imitar o outro. E a nossa fé não é para ser uma imitação. Portanto, suspeite sempre das multidões. Ora, a fraude não dura. A fraude é sempre exposta.
Líderes fundamentalistas prejudicam a Igreja?
Sim, mas eles, certamente, estão desaparecendo. E esse é um dos sinais da falta de verdade em suas palavras, pois a verdade é eterna. Eu penso que está provado que o fundamentalismo é um medo. Porém, o perfeito amor lança fora todo o medo, como diz a Escritura. Então, o medo está sempre errado. Por isso, é certo dizer que, hoje, não há muita diferença entre o ateísmo radical e o fundamentalismo radical – ambos são radicalismos. Lembre-se que a multidão está sempre errada. A grande questão é como equilibrar-se entre o fundamentalismo e o relativismo de nossos dias. A verdade não é algo que se domina; é ela que nos domina. Quando procuramos esse domínio, é uma procura sem fim. Só dominamos aquilo que compreendemos. Nessa busca, portanto, não há espaço para o mistério.
Logo, a Igreja Evangélica precisa de mais estudiosos e pesquisadores?
Bem, eu não os chamaria de estudiosos e pesquisadores. Eu simplesmente os chamaria de gente que pense claramente, que não tenha pretensões de ter uma identidade profissional de “pensador”. Em vez disso, que sejam pessoas dispostas a usar suas mentes para estarem livremente sujeitas à mente de Cristo. Esse é um novo tipo de estudioso. Quando você tem um talento ou uma mente brilhante, pode ser seduzido pelo academicismo. Mas, para crescer em Cristo, você tem que ser contra-cultural, ou seja, não pode ser dominado pelas ambições do estudo acadêmico. Pensadores assim são preparados pela vida, treinados nos relacionamentos com muitas pessoas. Mas, acima de tudo, são preparados pela oração. Se forem dedicados à oração diante de Deus, ele lhes dará intuições. E eles irão seguir essas intuições.
Esta não seria uma preparação muito mística?
Algumas pessoas diriam que qualquer coisa a ver com Deus é mística [risos]. Mas, OK, é isso mesmo. Se você quer dizer que místico é tudo que tem a ver com esse amor por Deus, vamos todos ser místicos!
Em muitos dos seus livros, o senhor insiste na questão dos relacionamentos como uma forma de expressão da fé cristã. Por quê?
Porque Deus é assim. O mistério do relacionamento do Pai com o Filho, e do Filho com o Pai, e de ambos com o Espírito Santo, me diz que Deus é essencialmente relacional. Tudo na ordem criada está em relacionamento com outro elemento. Seja no giro dos planetas, seja no ecossistema das plantas, nos habitats dos animais ou entre os próprios seres humanos. Tudo no universo é baseado em relacionamentos.
Como a relação com Cristo pode interferir e melhorar os relacionamentos entre as pessoas que creem nele? 
O que acontece é que nós podemos ter relacionamentos comuns com as pessoas. Podemos ter amizades superficiais, contatos eventuais, coisas que acabam não tendo muita importância. Porém, se você é fiel e leal a uma amizade cristã, o amor de Cristo o une a esta outra pessoa. É como ter um bom casamento: se eu tenho uma boa esposa, ela vai me dar experiências maravilhosas. E, quando você ama Cristo, ele vai lhe proporcionar aventuras que você nunca imaginaria. É fantástico perceber que, ao longo dos anos, esses relacionamentos que construímos se tornam tão significativos. Quando falamos a verdade, amamos a Cristo e procuramos o Senhor, descobrimos aquilo que Paulo já disse aos efésios – que Deus é poderoso para fazer infinitamente mais do que pensamos. Eu não tinha nenhuma ideia de que, até o fim da minha vida, estaria ligado a esses relacionamentos tão profundos, e eles a mim. É por isso que digo que o individualismo é um pecado! Ele fratura os relacionamentos. O isolamento é uma marca dos tempos atuais?
As inovações tecnológicas explicam, por si só, esse processo de isolamento do ser humano, como querem muitos estudiosos do comportamento?
Toda técnica, como disse Jacques Ellul há alguns anos, é uma simples extensão do poder humano. Então, se um martelo é uma extensão da minha fúria, eu posso facilmente partir o crânio de um inimigo. Ou, por outro lado, posso usar um gravador para gravar e preservar uma voz. Isso é uma bênção da tecnologia. Assim, o que a tecnologia pode simplesmente fazer é, em meio a um mundo caído, amplificar essas nossas ambiguidades. Você pode dizer que viver numa sociedade tecnológica é o melhor dos mundos e o pior dos mundos ao mesmo tempo, como Charles Dickens afirmou sobre viver em Londres durante a Revolução Industrial.
A ideia de “modernidade líquida”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, é baseada no pensamento de que os relacionamentos estão cada vez mais superficiais e os valores, relativos. As certezas tornam-se incertezas rapidamente. Na sua opinião de observador cristão das últimas décadas, como isso tem afetado a Igreja?
A modernidade é líquida em vários níveis. É líquida porque não há mais um ambiente de aldeia; o que há é um ambiente global. A escala é diferente. Bauman está certo e a tecnologia amplificou essa liquidez. A forma como fazemos as coisas e a informação que podemos guardar têm criado uma nova velocidade, uma velocidade acelerada. Por outro lado, algumas coisas não mudam. Uma vez, eu estava cortando uma árvore com uma serra elétrica e a máquina se soltou da minha mão. A serra atingiu meu dedo, mas tive uma reação rápida que impediu que cortasse o osso. Então, percebi que meu pensamento pôde ser rápido para causar uma reação mais rápida que a ação da serra, mas há limites. Não posso pensar mais rápido indefinidamente, ou reagir mais rápido sempre. Menos ainda, me adaptar a mudanças tão rapidamente ou conseguir me ajustar aos relacionamentos de maneira acelerada. A velocidade de tornar-se semelhante a Cristo é a mais lenta de todas. A velocidade na qual podemos conhecer a Deus vai fazer essa tarefa nos tomar a vida inteira.
Como relacionar isso com a oração?
A melhor forma de perceber quão imaturos nós somos é notar como são nossas orações. Se eu só digo a Deus “me dá, me dá e me dá”, pareço uma criança muito pequena. Mas, as pessoas também podem ir a um belo bosque e, lá, dizerem, apenas, “obrigado, Senhor”. Uma vida de oração é a simples celebração da presença de Deus. Nós nem precisamos falar.
A Igreja tem ensinado isso?
Acho que não. Pois, alguém diz: “Eu tenho um ministério”. E assim, um ministério se torna uma profissão, e a profissão é a identidade daquela pessoa. Logicamente, ela vai acabar dizendo às outras que têm de estar sob esse seu ministério.
Isso tem sido, em certa medida, comum em muitas igrejas brasileiras. O senhor ainda acredita em ministério pastoral de tempo integral?
Sim, e por que não? Há pessoas que estão dedicadas a fazer na vida da igreja aquilo que outros profissionais não poderão fazer. Acontece que somos seres humanos limitados, e precisamos estreitar nossas opções. Acontece que alguns podem estar à procura de uma posição perante a sociedade: querem uma identidade profissional, procuram um diploma ou uma posição na academia. Fui convidado para falar no Japão, e estive estudando sobre a competitividade e a pouca mobilidade profissional naquele país. Algumas pessoas sabem que, por 40 anos, não irão ser promovidas. Outras pensam que suas posições são estáveis demais. Naquela cultura, os cristãos, às vezes, seguem no sentido oposto ao que vocês, talvez, estejam seguindo no Brasil: “Se eu não vou ser promovido, ou se o mercado é competitivo demais, talvez, então, Deus esteja me chamando para o pastorado”. Em ambos os casos, pode ser só confusão.
Qual foi, na sua opinião, a grande mudança da Igreja no último século?
Nós, como o resto da cultura, estamos nos emancipando da modernidade, ou seja, do fato de termos que dar uma razão lógica para tudo que fazemos. A Igreja, no último século, focou-se na busca das “doutrinas certas”. Não que isso seja um problema; precisamos, de fato, perseguir a verdade, onde quer que ela esteja. Porém, tornamo-nos hipercognitivos. Só que, quando olhamos para as nuances da fé cristã, elas são muito mais numerosas do que apenas as coisas pragmáticas de nossa mente, como evangélicos racionais. Devemos, isso sim, estar preparados para abraçar todas as artes, e preparados para expressar todas as emoções no louvor a Deus e ao andar nos seus caminhos. Em outras palavras, a grande mudança é que os horizontes para a Igreja tornaram-se muito mais amplos.
Mas isso nunca aconteceu antes na Igreja? O que deveríamos fazer pra enxergar esses horizontes?
Não, nunca. Enxergar esses novos horizontes requer certas providências. A desinstitucionalização da fé é o novo grande empreendimento do Cristianismo. O que penso é que os cristãos deveriam se emancipar de suas denominações, já que elas têm um passado histórico no sentido contrário, ou seja, um compromisso de institucionalizar a fé. A igreja local deve ser mais importante, e as amizades locais, mais importantes ainda. Isso é o que os mais jovens já estão fazendo: procurando igrejas menores, nas casas, onde possam exercer essa fé. É lógico que há falácias e exageros nesse processo, especialmente quando observamos a geração anterior a esta – porém, esse é um movimento saudável.
Então, o senhor defende o fim das denominações?
Não exatamente. O que estou dizendo é que estamos vivendo uma profunda mudança cultural e haverá cada vez menos e menos entendimento do que são as denominações. Mas houve formas disso no passado. Richard Baxter, no século 17, estava tão cansado com as divisões durante a guerra civil, quando as pessoas tinham de definir se eram puritanas ou anglicanas, que disse: “Eu só quero ser como um cristão”. Ele já estava recusando as denominações. Por último, há dois processos acontecendo. Nunca fomos tão personalistas e nem tão globalizados. E, quanto mais estou ciente de mim mesmo, mais eu posso estar sensível à multiplicidade de vozes e costumes étnicos pelo resto do mundo.
A literatura sempre foi uma ferramenta importante para os cristãos. Como o senhor avalia a literatura cristã de hoje?
É claro que a literatura cristã é uma expressão da cultura e das mudanças culturais. Por isso, é importante para nós termos os clássicos como uma âncora. Eles se mantiveram como tal, apesar das mudanças na cultura. A receita de C. S. Lewis era: “Para cada livro contemporâneo que leio, quero ler três clássicos”.
Por falar em Lewis, o senhor conheceu gigantes da fé e das letras como ele, Henri Nouwen e J.R.R. Tolkien. Qual o legado deles para a Igreja de hoje?
Curiosamente, eles não foram importantes nos seus dias. Lewis não era uma voz importante em Oxford quando o conheci, há muitos anos. A voz delem hoje, constitui um legado, mas não era uma realidade naqueles tempos. O mesmo aconteceu com Henri Nouwen. E a razão porque suas vozes deles foram ficando mais altas, mesmo após morrerem, é porque eles tiveram a coragem de permanecer contra a cultura deles. E nós, hoje, somos inspirados por eles a fazermos o mesmo. Qualquer um de vocês, brasileiros, pode ser mais influente no século 21 do que foi C.S. Lewis, simplesmente se for uma voz no Brasil. Mas, no seu tempo, provavelmente, não vai ser um ninguém. Em sua cultura e tempo, um profeta não é ouvido. Esse é um privilégio de ser velho. Você descobre que era um profeta 60 anos atrás e ninguém o ouvia [risos]
O Regent College surgiu com esse tipo de propósito – o de preparar pessoas para serem relevantes nos seus contextos. Qual a importância dessa escola, hoje?
Regent tem a simples convicção – e foi isso que me convenceu a vir fundar a escola no passado – de que é um erro não usar toda a inteligência que elas usam nos seus locais de trabalho para a vida da igreja. Eu dizia: “Deixe sua inteligência ser tão consistente para a fé quanto ela é para suas atividades no mercado de trabalho”. Era uma simples voz, mas essa voz agora é compreendida. Mesmo assim, 60 anos é pouco. Por isso, a minha luta no início. A escola ainda é nova para nossa cultura. Regent está preparando pessoas para pensarem por si mesmas e para viverem sua fé fora da igreja, mas contra a cultura.
O que senhor quis dizer, num de seus livros, quando escreveu que “o calcanhar de Aquiles de uma pessoa é o seu guia para um relacionamento com Deus”?
O calcanhar de Aquiles é aquele ponto onde vacilamos, onde estamos feridos e somos vulneráveis. Então, se eu não preciso de Deus, eu nunca vou conhecê-lo. Dessa forma, a situação onde eu vacilo é a situação onde preciso de Deus. Não queremos demonstrar que temos um calcanhar de Aquiles porque vivemos em competição. Na nossa fazenda animal, ninguém quer mostrar fragilidade e feridas. Ninguém quer expressar humildade num ambiente tão competitivo.
O senhor mantém uma agenda ativa na nona década de sua vida. O que diria a idosos que, diferentemente do senhor, estão apenas descansando, enquanto aguardam pelo dia final de suas vidas?
Isso é trágico! É muito triste de ver esse desperdício. Uma das coisas loucas dessa cultura global é que nós esquecemos das etapas da vida. Então, em vez de pensarmos em juventude e velhice, sem nada no meio, deveríamos reconhecer que crescemos. Crescemos a partir da criança; do adolescente. Crescemos quando jovens, quando passamos para a idade adulta, para a maturidade, e assim por diante. Precisamos reconhecer que, em todas essas fases da vida, nos são dados novos desafios, novas oportunidades de continuar crescendo. Para mim, está claro que pessoas que ficam paralisadas desistem da vida.
Como seus últimos anos ao lado da sua esposa, Rita [N.da Redação: Rita Houston faleceu em outubro de 2014, após um período com perda progressiva das suas capacidades cognitivas], moldaram o seu pensamento atual sobre a vida?
Uma coisa importante de estar ao lado de uma boa esposa é que ela contradiz você. Os últimos anos foram muito duros e, ao mesmo tempo, uma benção. Um jovem casal estava vendendo o apartamento deles para nós porque estavam se divorciando. Eu estava muito triste porque estávamos nos beneficiando da compra naquelas circunstâncias, mas eles adoravam o lugar. Um dia, a moça veio para retirar as últimas coisas e falou para mim: “Deve ser muito difícil para o senhor viver com sua mulher perdendo a memória”. Eu respondi: “Não, não é. Esses são os nossos anos dourados”. Ela me olhou, chocada. Lá estava ela, uma jovem que lutara sem sucesso para manter seu casamento diante de um ancião dizendo que os anos vividos ao lado da mulher com demência eram os seus melhores anos. Expliquei que aquilo era o amor incondicional, e que me sentia um privilegiado por ser, naquelas circunstâncias, a memória de minha esposa, numa nova forma de expressão da afeição entre nós. O resultado daquela conversa é que, alguns meses depois, ela voltou para casa, eles se reconciliaram e continuam vivendo no mesmo lugar. A partir dali, eu pude dizer-lhes o que significava ser cristão e o que era um casamento cristão.
Para um homem de 93 anos, que tipo de conhecimento o senhor ainda busca na vida?
Bem, na verdade, minha busca é por algo mais do que conhecimento; é perseguir a verdade. Nós estamos sempre perguntando o que é a verdade e, como cristãos, nós queremos ser fiéis até o fim. Eu nasci exatamente quatro anos depois da rendição alemã na Primeira Guerra Mundial e tive todos os ecos do conflito na minha infância. Imagine ter experimentado todas as mudanças com a Grande Depressão, a Segunda Guerra, a riqueza de ter vivido na Espanha quando criança, depois de ter crescido na Escócia e viajado o mundo como geógrafo... Acho que o que acontece quando se tem todas essas ricas experiências, assim como os sofrimentos pelos quais se passa, é que você quer continuar vivendo.
E o quê os seus sofrimentos lhe ensinaram?
Eu acho que o que você percebe é que também tem de passar pela redenção das feridas emocionais de quando era uma criança. Algumas pessoas nunca as superam. É por isso que parecem derrotadas no fim da vida. Temos que perceber isso e, realmente, celebrar a redenção do nosso passado emocional. Além disso, também me foi dado o dom de ver coisas além do tempo. No entanto, eu sempre me senti, por muitos anos, prisioneiro das minhas próprias circunstâncias. As pessoas não entendiam do que eu estava falando. Agora, 60 anos depois, algumas coisas que eu dizia são ideias comuns, mas elas não eram muito populares quando as disse. Então, é uma alegria ter algumas ideias sobre tendências e cultura, que todos criticavam, obterem a concordância das pessoas e até fazer parte do senso comum. Sentir-me frustrado e aprisionado e, agora, ser compreendido, me faz renovado, liberto da prisão, como Pedro, pronto para sair e gritar um pouco mais na praça pública.