Entrevista exclusiva com o Dr. James Houston: "Enxergar novos horizontes requer certas providências. A desinstitucionalização da fé é o novo grande empreendimento do Cristianismo. O que penso é que os cristãos deveriam se emancipar de suas denominações."
Escrito por Por André Azevedo
| DR.JAMES HOUSTON |
Por telefone – fixo, é claro –, tenta-se marcar uma entrevista. A
esperança é conseguir espaço na agenda de um ativo senhor de 93 anos,
que não atende pelos títulos de pastor ou teólogo, mas que há décadas é
uma das vozes mais relevantes no meio evangélico internacional. Jim
(James) Houston atende, ouve o pedido e responde, docemente: “Você pode
vir amanhã às oito? Podemos tomar o café da manhã juntos”. O acesso
fácil ao concorrido teólogo, geógrafo e pregador James Houston, fundador
do renomado Regent College, em Vancouver (Canadá), e autor de diversos
livros cristãos que influenciam gerações de crentes, não é sorte e nem
milagre. Na verdade, refeições com alunos, professores e amigos de todo o
mundo são uma marca do ministério do ainda professor e palestrante.
No dia seguinte, a reportagem chega à oito horas e sete minutos da
manhã na porta do prédio onde Houston vive sozinho e completamente
independente. O senhor de hábitos britânicos desce, abre a porta,
oferece vaga na garagem e lembra ao entrevistador brasileiro que ele
está atrasado, ao dizer: “Como você não chegava, não sabia mais se
vinha”. Deixados os sete minutos de lado, da porta do apartamento já
dava para ver uma mesa semi-arrumada. Houston pede uns minutos, oferece
uma visita à varanda – com direito à brisa e uma bela vista de Vancouver
– e dá início uma detalhada composição da mesa. Louças impecáveis, café
e croissants frescos mostram que a hospitalidade é um hábito bem
treinado ao longo de décadas.
A conversa começa diante de um homem cuja virtude, confirmada por
quase todos que ficam diante dele, é dar aos seus interlocutores a
certeza de que está sendo atentamente ouvido. Houston atendeu
CRISTIANISMO HOJE com exclusividade, nos dias que antecederam uma nova
visita ao Brasil. Nesta conversa de varanda, Houston fala sobre
espiritualidade, oração, relacionamentos – temas com os quais conviveu
ao longo da vida ministerial e que fizeram dele um dos mestres mais
requisitados – e queridos – da Palavra de Deus nas últimas décadas.
CRISTIANISMO HOJE – Suas áreas de estudo incluem a oração, a
espiritualidade e a formação espiritual. Quais as conexões entre elas?
JAMES HOUSTON – Quando eu estava na universidade, em
Oxford, decidi ser um tipo específico de geógrafo, estudando o que se
pode chamar de história das ideias. Isso me permitiu entender como as
ideias e identidades surgiam num determinado período da história ou num
determinado grupo étnico. Mas minha paixão era buscar entender a
identidade de um discípulo de Cristo em vários ambientes. Qual o caráter
de Pedro no primeiro século? Qual o caráter de Bernardo de Claraval ou
de João Calvino? Diante de um calvinismo ou de um movimento de
espiritismo, por exemplo, precisamos dissecá-los para entendê-los.
O senhor já esteve algumas vezes no Brasil. O que pensa da espiritualidade dos cristãos brasileiros?
Existe uma nova espiritualidade, não apenas no Brasil, mas em muitas
outras partes o mundo. No específico caso brasileiro, precisamos
dissecar o que é essa nova espiritualidade, descobrir porque a teologia
da prosperidade é tão atraente às classes médias e populares e entender o
Evangelho numa cultura que tem particularidades únicas – como o fato de
ter se livrado tão tarde da escravidão. É preciso desenvolver uma
história das ideias do Brasil, e então vamos entender melhor o que está
no DNA brasileiro.
No Brasil, algumas denominações, especialmente as
neopentecostais ou pós-pentecostais, cresceram bastante com uma pregação
baseada na prosperidade material. Ela é ou não um termômetro da bênção
de Deus?
Essa uma meia-verdade, não toda a verdade. Por isso, a Teologia da
Libertação está morrendo hoje. Sim, nós precisamos libertar os cativos.
Mas libertá-los de qual maneira? Socialmente? Espiritualmente? Se a
proposta é uma libertação apenas social, e não espiritual, é um erro. Há
esperança. Há grande potencial de, num ambiente de pobreza, anunciar o
Evangelho para o pobre. Temos que libertar da pobreza e anunciar o
Evangelho, mas o último é mais importante. Do contrário, seremos
inconsistentes. Penso que, para aqueles que vivem na pobreza, será
certamente muito mais fácil clamar por Deus do que é para os ricos.
Jesus diz que é muito difícil para o rico entrar no Reino dos céus. No
entanto, você pode ter pessoas ricas e espiritualmente devotas a Deus,
que não usam suas riquezas para si mesmas. Havia uma riquíssima viúva em
Roma que mantinha correspondência com Agostinho. Numa das cartas, ela
pediu a ele, muito humildemente, que lhe ensinasse o que pedir em
oração. Não é maravilhoso ver uma pessoa rica e tão pura?
Apesar das muitas críticas, uma quantidade considerável de
cristãos preferem agir como Gamaliel, dizendo que devemos deixar essas
igrejas crescerem e apenas no futuro avaliar se esse movimento provém de
Deus ou não. Isso pode ser perigoso?
Eu acho que devemos dar uma olhada no Evangelho de João. Ele está
sempre falando da ideia de multidão. Ora, a multidão é instável, é
superficial. A ideia de estar na multidão significa imitar o outro. E a
nossa fé não é para ser uma imitação. Portanto, suspeite sempre das
multidões. Ora, a fraude não dura. A fraude é sempre exposta.
Líderes fundamentalistas prejudicam a Igreja?
Sim, mas eles, certamente, estão desaparecendo. E esse é um dos
sinais da falta de verdade em suas palavras, pois a verdade é eterna. Eu
penso que está provado que o fundamentalismo é um medo. Porém, o
perfeito amor lança fora todo o medo, como diz a Escritura. Então, o
medo está sempre errado. Por isso, é certo dizer que, hoje, não há muita
diferença entre o ateísmo radical e o fundamentalismo radical – ambos
são radicalismos. Lembre-se que a multidão está sempre errada. A grande
questão é como equilibrar-se entre o fundamentalismo e o relativismo de
nossos dias. A verdade não é algo que se domina; é ela que nos domina.
Quando procuramos esse domínio, é uma procura sem fim. Só dominamos
aquilo que compreendemos. Nessa busca, portanto, não há espaço para o
mistério.
Logo, a Igreja Evangélica precisa de mais estudiosos e pesquisadores?
Bem, eu não os chamaria de estudiosos e pesquisadores. Eu
simplesmente os chamaria de gente que pense claramente, que não tenha
pretensões de ter uma identidade profissional de “pensador”. Em vez
disso, que sejam pessoas dispostas a usar suas mentes para estarem
livremente sujeitas à mente de Cristo. Esse é um novo tipo de estudioso.
Quando você tem um talento ou uma mente brilhante, pode ser seduzido
pelo academicismo. Mas, para crescer em Cristo, você tem que ser
contra-cultural, ou seja, não pode ser dominado pelas ambições do estudo
acadêmico. Pensadores assim são preparados pela vida, treinados nos
relacionamentos com muitas pessoas. Mas, acima de tudo, são preparados
pela oração. Se forem dedicados à oração diante de Deus, ele lhes dará
intuições. E eles irão seguir essas intuições.
Esta não seria uma preparação muito mística?
Algumas pessoas diriam que qualquer coisa a ver com Deus é mística
[risos]. Mas, OK, é isso mesmo. Se você quer dizer que místico é tudo
que tem a ver com esse amor por Deus, vamos todos ser místicos!
Em muitos dos seus livros, o senhor insiste na questão dos relacionamentos como uma forma de expressão da fé cristã. Por quê?
Porque Deus é assim. O mistério do relacionamento do Pai com o Filho,
e do Filho com o Pai, e de ambos com o Espírito Santo, me diz que Deus é
essencialmente relacional. Tudo na ordem criada está em relacionamento
com outro elemento. Seja no giro dos planetas, seja no ecossistema das
plantas, nos habitats dos animais ou entre os próprios seres humanos.
Tudo no universo é baseado em relacionamentos.
Como a relação com Cristo pode interferir e melhorar os relacionamentos entre as pessoas que creem nele?
O que acontece é que nós podemos ter relacionamentos comuns com as
pessoas. Podemos ter amizades superficiais, contatos eventuais, coisas
que acabam não tendo muita importância. Porém, se você é fiel e leal a
uma amizade cristã, o amor de Cristo o une a esta outra pessoa. É como
ter um bom casamento: se eu tenho uma boa esposa, ela vai me dar
experiências maravilhosas. E, quando você ama Cristo, ele vai lhe
proporcionar aventuras que você nunca imaginaria. É fantástico perceber
que, ao longo dos anos, esses relacionamentos que construímos se tornam
tão significativos. Quando falamos a verdade, amamos a Cristo e
procuramos o Senhor, descobrimos aquilo que Paulo já disse aos efésios –
que Deus é poderoso para fazer infinitamente mais do que pensamos. Eu
não tinha nenhuma ideia de que, até o fim da minha vida, estaria ligado a
esses relacionamentos tão profundos, e eles a mim. É por isso que digo
que o individualismo é um pecado! Ele fratura os relacionamentos. O
isolamento é uma marca dos tempos atuais?
As inovações tecnológicas explicam, por si só, esse processo
de isolamento do ser humano, como querem muitos estudiosos do
comportamento?
Toda técnica, como disse Jacques Ellul há alguns anos, é uma simples
extensão do poder humano. Então, se um martelo é uma extensão da minha
fúria, eu posso facilmente partir o crânio de um inimigo. Ou, por outro
lado, posso usar um gravador para gravar e preservar uma voz. Isso é uma
bênção da tecnologia. Assim, o que a tecnologia pode simplesmente fazer
é, em meio a um mundo caído, amplificar essas nossas ambiguidades. Você
pode dizer que viver numa sociedade tecnológica é o melhor dos mundos e
o pior dos mundos ao mesmo tempo, como Charles Dickens afirmou sobre
viver em Londres durante a Revolução Industrial.
A ideia de “modernidade líquida”, do sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, é baseada no pensamento de que os relacionamentos estão
cada vez mais superficiais e os valores, relativos. As certezas
tornam-se incertezas rapidamente. Na sua opinião de observador cristão
das últimas décadas, como isso tem afetado a Igreja?
A modernidade é líquida em vários níveis. É líquida porque não há
mais um ambiente de aldeia; o que há é um ambiente global. A escala é
diferente. Bauman está certo e a tecnologia amplificou essa liquidez. A
forma como fazemos as coisas e a informação que podemos guardar têm
criado uma nova velocidade, uma velocidade acelerada. Por outro lado,
algumas coisas não mudam. Uma vez, eu estava cortando uma árvore com uma
serra elétrica e a máquina se soltou da minha mão. A serra atingiu meu
dedo, mas tive uma reação rápida que impediu que cortasse o osso. Então,
percebi que meu pensamento pôde ser rápido para causar uma reação mais
rápida que a ação da serra, mas há limites. Não posso pensar mais rápido
indefinidamente, ou reagir mais rápido sempre. Menos ainda, me adaptar a
mudanças tão rapidamente ou conseguir me ajustar aos relacionamentos de
maneira acelerada. A velocidade de tornar-se semelhante a Cristo é a
mais lenta de todas. A velocidade na qual podemos conhecer a Deus vai
fazer essa tarefa nos tomar a vida inteira.
Como relacionar isso com a oração?
A melhor forma de perceber quão imaturos nós somos é notar como são
nossas orações. Se eu só digo a Deus “me dá, me dá e me dá”, pareço uma
criança muito pequena. Mas, as pessoas também podem ir a um belo bosque
e, lá, dizerem, apenas, “obrigado, Senhor”. Uma vida de oração é a
simples celebração da presença de Deus. Nós nem precisamos falar.
A Igreja tem ensinado isso?
Acho que não. Pois, alguém diz: “Eu tenho um ministério”. E assim, um
ministério se torna uma profissão, e a profissão é a identidade daquela
pessoa. Logicamente, ela vai acabar dizendo às outras que têm de estar
sob esse seu ministério.
Isso tem sido, em certa medida, comum em muitas igrejas
brasileiras. O senhor ainda acredita em ministério pastoral de tempo
integral?
Sim, e por que não? Há pessoas que estão dedicadas a fazer na vida da
igreja aquilo que outros profissionais não poderão fazer. Acontece que
somos seres humanos limitados, e precisamos estreitar nossas opções.
Acontece que alguns podem estar à procura de uma posição perante a
sociedade: querem uma identidade profissional, procuram um diploma ou
uma posição na academia. Fui convidado para falar no Japão, e estive
estudando sobre a competitividade e a pouca mobilidade profissional
naquele país. Algumas pessoas sabem que, por 40 anos, não irão ser
promovidas. Outras pensam que suas posições são estáveis demais. Naquela
cultura, os cristãos, às vezes, seguem no sentido oposto ao que vocês,
talvez, estejam seguindo no Brasil: “Se eu não vou ser promovido, ou se o
mercado é competitivo demais, talvez, então, Deus esteja me chamando
para o pastorado”. Em ambos os casos, pode ser só confusão.
Qual foi, na sua opinião, a grande mudança da Igreja no último século?
Nós, como o resto da cultura, estamos nos emancipando da modernidade,
ou seja, do fato de termos que dar uma razão lógica para tudo que
fazemos. A Igreja, no último século, focou-se na busca das “doutrinas
certas”. Não que isso seja um problema; precisamos, de fato, perseguir a
verdade, onde quer que ela esteja. Porém, tornamo-nos hipercognitivos.
Só que, quando olhamos para as nuances da fé cristã, elas são muito mais
numerosas do que apenas as coisas pragmáticas de nossa mente, como
evangélicos racionais. Devemos, isso sim, estar preparados para abraçar
todas as artes, e preparados para expressar todas as emoções no louvor a
Deus e ao andar nos seus caminhos. Em outras palavras, a grande mudança
é que os horizontes para a Igreja tornaram-se muito mais amplos.
Mas isso nunca aconteceu antes na Igreja? O que deveríamos fazer pra enxergar esses horizontes?
Não, nunca. Enxergar esses novos horizontes requer certas
providências. A desinstitucionalização da fé é o novo grande
empreendimento do Cristianismo. O que penso é que os cristãos deveriam
se emancipar de suas denominações, já que elas têm um passado histórico
no sentido contrário, ou seja, um compromisso de institucionalizar a fé.
A igreja local deve ser mais importante, e as amizades locais, mais
importantes ainda. Isso é o que os mais jovens já estão fazendo:
procurando igrejas menores, nas casas, onde possam exercer essa fé. É
lógico que há falácias e exageros nesse processo, especialmente quando
observamos a geração anterior a esta – porém, esse é um movimento
saudável.
Então, o senhor defende o fim das denominações?
Não exatamente. O que estou dizendo é que estamos vivendo uma
profunda mudança cultural e haverá cada vez menos e menos entendimento
do que são as denominações. Mas houve formas disso no passado. Richard
Baxter, no século 17, estava tão cansado com as divisões durante a
guerra civil, quando as pessoas tinham de definir se eram puritanas ou
anglicanas, que disse: “Eu só quero ser como um cristão”. Ele já estava
recusando as denominações. Por último, há dois processos acontecendo.
Nunca fomos tão personalistas e nem tão globalizados. E, quanto mais
estou ciente de mim mesmo, mais eu posso estar sensível à multiplicidade
de vozes e costumes étnicos pelo resto do mundo.
A literatura sempre foi uma ferramenta importante para os cristãos. Como o senhor avalia a literatura cristã de hoje?
É claro que a literatura cristã é uma expressão da cultura e das
mudanças culturais. Por isso, é importante para nós termos os clássicos
como uma âncora. Eles se mantiveram como tal, apesar das mudanças na
cultura. A receita de C. S. Lewis era: “Para cada livro contemporâneo
que leio, quero ler três clássicos”.
Por falar em Lewis, o senhor conheceu gigantes da fé e das
letras como ele, Henri Nouwen e J.R.R. Tolkien. Qual o legado deles para
a Igreja de hoje?
Curiosamente, eles não foram importantes nos seus dias. Lewis não era
uma voz importante em Oxford quando o conheci, há muitos anos. A voz
delem hoje, constitui um legado, mas não era uma realidade naqueles
tempos. O mesmo aconteceu com Henri Nouwen. E a razão porque suas vozes
deles foram ficando mais altas, mesmo após morrerem, é porque eles
tiveram a coragem de permanecer contra a cultura deles. E nós, hoje,
somos inspirados por eles a fazermos o mesmo. Qualquer um de vocês,
brasileiros, pode ser mais influente no século 21 do que foi C.S. Lewis,
simplesmente se for uma voz no Brasil. Mas, no seu tempo,
provavelmente, não vai ser um ninguém. Em sua cultura e tempo, um
profeta não é ouvido. Esse é um privilégio de ser velho. Você descobre
que era um profeta 60 anos atrás e ninguém o ouvia [risos]
O Regent College surgiu com esse tipo de propósito – o de
preparar pessoas para serem relevantes nos seus contextos. Qual a
importância dessa escola, hoje?
Regent tem a simples convicção – e foi isso que me convenceu a vir
fundar a escola no passado – de que é um erro não usar toda a
inteligência que elas usam nos seus locais de trabalho para a vida da
igreja. Eu dizia: “Deixe sua inteligência ser tão consistente para a fé
quanto ela é para suas atividades no mercado de trabalho”. Era uma
simples voz, mas essa voz agora é compreendida. Mesmo assim, 60 anos é
pouco. Por isso, a minha luta no início. A escola ainda é nova para
nossa cultura. Regent está preparando pessoas para pensarem por si
mesmas e para viverem sua fé fora da igreja, mas contra a cultura.
O que senhor quis dizer, num de seus livros, quando escreveu
que “o calcanhar de Aquiles de uma pessoa é o seu guia para um
relacionamento com Deus”?
O calcanhar de Aquiles é aquele ponto onde vacilamos, onde estamos
feridos e somos vulneráveis. Então, se eu não preciso de Deus, eu nunca
vou conhecê-lo. Dessa forma, a situação onde eu vacilo é a situação onde
preciso de Deus. Não queremos demonstrar que temos um calcanhar de
Aquiles porque vivemos em competição. Na nossa fazenda animal, ninguém
quer mostrar fragilidade e feridas. Ninguém quer expressar humildade num
ambiente tão competitivo.
O senhor mantém uma agenda ativa na nona década de sua vida. O
que diria a idosos que, diferentemente do senhor, estão apenas
descansando, enquanto aguardam pelo dia final de suas vidas?
Isso é trágico! É muito triste de ver esse desperdício. Uma das
coisas loucas dessa cultura global é que nós esquecemos das etapas da
vida. Então, em vez de pensarmos em juventude e velhice, sem nada no
meio, deveríamos reconhecer que crescemos. Crescemos a partir da
criança; do adolescente. Crescemos quando jovens, quando passamos para a
idade adulta, para a maturidade, e assim por diante. Precisamos
reconhecer que, em todas essas fases da vida, nos são dados novos
desafios, novas oportunidades de continuar crescendo. Para mim, está
claro que pessoas que ficam paralisadas desistem da vida.
Como seus últimos anos ao lado da sua esposa, Rita [N.da
Redação: Rita Houston faleceu em outubro de 2014, após um período com
perda progressiva das suas capacidades cognitivas], moldaram o seu
pensamento atual sobre a vida?
Uma coisa importante de estar ao lado de uma boa esposa é que ela
contradiz você. Os últimos anos foram muito duros e, ao mesmo tempo, uma
benção. Um jovem casal estava vendendo o apartamento deles para nós
porque estavam se divorciando. Eu estava muito triste porque estávamos
nos beneficiando da compra naquelas circunstâncias, mas eles adoravam o
lugar. Um dia, a moça veio para retirar as últimas coisas e falou para
mim: “Deve ser muito difícil para o senhor viver com sua mulher perdendo
a memória”. Eu respondi: “Não, não é. Esses são os nossos anos
dourados”. Ela me olhou, chocada. Lá estava ela, uma jovem que lutara
sem sucesso para manter seu casamento diante de um ancião dizendo que os
anos vividos ao lado da mulher com demência eram os seus melhores anos.
Expliquei que aquilo era o amor incondicional, e que me sentia um
privilegiado por ser, naquelas circunstâncias, a memória de minha
esposa, numa nova forma de expressão da afeição entre nós. O resultado
daquela conversa é que, alguns meses depois, ela voltou para casa, eles
se reconciliaram e continuam vivendo no mesmo lugar. A partir dali, eu
pude dizer-lhes o que significava ser cristão e o que era um casamento
cristão.
Para um homem de 93 anos, que tipo de conhecimento o senhor ainda busca na vida?
Bem, na verdade, minha busca é por algo mais do que conhecimento; é
perseguir a verdade. Nós estamos sempre perguntando o que é a verdade e,
como cristãos, nós queremos ser fiéis até o fim. Eu nasci exatamente
quatro anos depois da rendição alemã na Primeira Guerra Mundial e tive
todos os ecos do conflito na minha infância. Imagine ter experimentado
todas as mudanças com a Grande Depressão, a Segunda Guerra, a riqueza de
ter vivido na Espanha quando criança, depois de ter crescido na Escócia
e viajado o mundo como geógrafo... Acho que o que acontece quando se
tem todas essas ricas experiências, assim como os sofrimentos pelos
quais se passa, é que você quer continuar vivendo.
E o quê os seus sofrimentos lhe ensinaram?
Eu acho que o que você percebe é que também tem de passar pela
redenção das feridas emocionais de quando era uma criança. Algumas
pessoas nunca as superam. É por isso que parecem derrotadas no fim da
vida. Temos que perceber isso e, realmente, celebrar a redenção do nosso
passado emocional. Além disso, também me foi dado o dom de ver coisas
além do tempo. No entanto, eu sempre me senti, por muitos anos,
prisioneiro das minhas próprias circunstâncias. As pessoas não entendiam
do que eu estava falando. Agora, 60 anos depois, algumas coisas que eu
dizia são ideias comuns, mas elas não eram muito populares quando as
disse. Então, é uma alegria ter algumas ideias sobre tendências e
cultura, que todos criticavam, obterem a concordância das pessoas e até
fazer parte do senso comum. Sentir-me frustrado e aprisionado e, agora,
ser compreendido, me faz renovado, liberto da prisão, como Pedro, pronto
para sair e gritar um pouco mais na praça pública.
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