É preciso mudar drasticamente a mentalidade universitária, a ponto de incidir em novas ações políticas que combatam em seu interior as formas de reprodução das gestões oligárquicas de poder, o produtivismo academicista estéril e um estado de letargia geral entre a categoria docente no que tange à luta por seus direitos.

De forma objetiva e em uma perspectiva ideal, pode-se afirmar que a universidade pública constitui o lócus da produção, da troca e da disseminação do conhecimento científico e cultural; é um patrimônio da sociedade e, como tal, deve servir aos interesses públicos. Mais ainda, enquanto instância social, a universidade pública no Brasil deve ser democrática do ponto de vista da produção do saber, bem como crítica, reflexiva e propositiva no modo de pensar e agir diante dos dilemas e dramas do país mais desigual do planeta.

É preciso defender enfaticamente a universidade pública no Brasil, haja vista a intensificação de toda uma campanha de difamação, ódio e desinformação na esfera pública direcionada às instituições públicas de ensino superior, capitaneada por setores conservadores e de extrema direita. Tal campanha se une aos ataques oriundos das políticas neoliberais que, desde os anos 1990, são uma realidade no país, representadas pela austeridade, pelos cortes orçamentários, pela extinção de programas e bolsas, e pelo anseio de privatizar as universidades e subjugá-las ao pensamento único, a exemplo da mera reprodução científica, ideológica e cultural de mercado.

É fato que o orçamento das universidades federais duplicou entre 2008 e 2014, uma ascendente derivada do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o que significou o ingresso de mais docentes via concursos públicos, a criação de novas universidades, a construção de novos campi, a ampliação de vagas para estudantes, a reestruturação curricular, entre outras questões. O salto quantitativo constitui uma realidade que não pode ser negada, muito embora na atualidade o passivo oriundo do Reuni seja gigantesco.

Entretanto, com a crise econômica e política no início do segundo mandato de Dilma Rousseff, seu consequente impedimento e a chegada de Michel Temer ao poder, não somente se barrou a ampliação orçamentária para a educação e as universidades, como também foram feitos cortes substanciais de recursos financeiros para a manutenção das instituições por imposição da Emenda Constitucional n. 95, ao contingenciar valores com o objetivo de garantir o pagamento exorbitante dos juros da dívida pública. O programa Uma Ponte para o Futuro e o projeto Escola sem Partido são dois exemplos nefastos que já indicavam a força do pensamento neoliberal em aliança com a ideologia conservadora, presentes nos espaços de poder representativo.

Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, o cinismo apareceu como racionalidade e se tornou arte de governar. Cinismo em forma de crueldades e ataques à ciência, ao conhecimento e às universidades federais, tidas pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub, como lugares de “politicagem, ideologização e balbúrdia” e vistas como um peso para o Estado do ponto de vista de seus gastos.

A pandemia de Covid-19 também escancarou deliberadamente as ofensas por parte do governo de extrema direita às instituições de ensino superior e suas pesquisas, traduzidas em perseguições, exonerações de cargos, censura de diversos tipos e imposição autoritária na escolha de interventores aliados à frente da direção de muitas universidades, em claras posições negacionistas e autoritárias. O ex-presidente, entre 2019 e 2022, fez acaloradas declarações públicas contra as universidades, taxando-as como lugares de militância e esquerdismo, em tom pejorativo, claro.

Diante do exposto até aqui, fica evidente que é preciso defender a todo custo a universidade pública, ainda mais em uma conjuntura complexa, na qual o país se encontra dividido e polarizado politicamente, como bem demonstraram a eleição de Lula e a dos representantes para o Legislativo em 2022. Essa defesa deve ser intransigente diante de um cenário de claro fortalecimento da extrema direita e do fascismo, que se utilizam da esfera pública para mobilizar e dominar as subjetividades das massas no enxame digital no qual a população está inserida.

Porém, é necessário discorrer sobre como a universidade no Brasil está estruturada hoje e quais são suas principais problemáticas, para então apontar alguns caminhos e alternativas de como ela pode vir a ser. Dessa forma, as instituições públicas de ensino superior estão situadas em um período histórico de crise estrutural do capital, que tem sua inflexão nos anos 1970, momento de reestruturação geográfica produtiva do capitalismo global, refletida na expansão física das grandes corporações e sua penetração nociva nas mais variadas instâncias da vida social sob o que se convencionou denominar de neoliberalismo.

As repercussões desse processo de reconfiguração capitalista possibilitaram uma drástica mudança nos padrões do sistema produtor de mercadorias em sua relação permanente com os Estados nacionais, tanto pelas inovações organizacionais e tecnológicas como pela instauração de um sociometabolismo, que, por sua vez, controla e estrutura toda a sociedade e submete suas relações de produção às necessidades materiais e ideológicas do grande capital.

Tais transformações históricas no sistema vigente, chamado por alguns autores de novo padrão de acumulação flexível, representa a fase mais destrutiva do capitalismo em suas dimensões financeira, monopolista e informacional. E não me refiro apenas a uma predação socioambiental do planeta, mas também às sociabilidades, reificadas e submetidas ao fascínio pelo dinheiro e pelo consumismo, da qual a universidade não escapa, porque é expressão da sociedade da qual faz parte.

É fato que as universidades públicas brasileiras foram engolidas pela racionalidade neoliberal em suas práticas; Marilena Chaui denominou-as universidades operacionais. O produtivismo, a nosso ver, é uma das principais dimensões desse tipo de universidade, principalmente nas pós-graduações, tributárias de uma mercantilização do saber, próprias de um sistema quantitativo de produção simulada de conhecimento. Isto é, não se produz conhecimento científico comprometido com a transformação social porque esse sistema quantitativo de produção obedece a lógicas financeiras, mercadológicas e empresariais que reforçam ideais meritocráticos, instrumentais e competitivos, voltados amiúde para os ganhos pessoais, como a busca por poder e prestígio.

Tal lógica atinge em cheio a categoria docente, alienando-a de forma a não se reconhecer como classe trabalhadora, ao menosprezar e desqualificar o movimento sindical e seu caráter classista, não participar dos debates sobre a carreira, bem como das formulações e proposições na construção de outra universidade, menos voltada para si mesma e mais preocupada com os dramas da sociedade.

O Currículo Lattes é a maior expressão dessa lógica produtivista. Fetichizado como coisa a ser preenchida na busca por resultados, o nível de quantificação é o que vai diferenciar uns e outros nos processos de avaliação, hierarquizando aqueles que mais têm projetos, que mais publicam e que mais orientam em relação àqueles que fazem isso de modo menos intenso. Nesse contexto é que aparecem claramente as disputas entre docentes e seus grupos por recursos financeiros via editais de organismos como a Capes e as agências de fomento. São disputas tantas vezes desleais, em que certas oligarquias acadêmicas administram e controlam para onde vai e para quem são destinados recursos para bolsas, publicações, convênios, viagens, diárias etc.

A racionalidade neoliberal tem afetado particularmente as ciências humanas no Brasil; o saber técnico e prático se torna a regra; programas de pós-graduação e seus docentes estimulam alunos a não dar importância à teoria em nome de uma espécie de performance empírica, na exacerbação da linguagem matematizada de números, gráficos e tabelas, tantas vezes carente de reflexão e de crítica e despreocupada com o saber filosófico. O academicismo estéril transforma professores, intelectuais e pesquisadores em proletários científicos, que produzem orientados por uma ideologia empreendedora, burocrática, eficiente, padronizada e acelerada, o que tem afetado a saúde mental de muitos discentes e docentes, em virtude da excessiva carga de trabalho.

No entanto, é preciso subverter a universidade pública, mesmo ela sendo hoje expressão dessa racionalidade neoliberal. E existem aspectos a serem destacados sobre como deve ser o relevante papel da universidade brasileira, como no modo indissociável, democrático, plural e transparente de fazer ensino, pesquisa e extensão. Ser acessível tanto do ponto de vista do ingresso de novos estudantes, como na ampliação e no aperfeiçoamento de políticas afirmativas, quanto na prestação de serviço a quem dela necessita. A universidade e seus participantes devem lutar contra estruturas de dominação e valorizar a dúvida na construção do conhecimento.

Mais que isso, é preciso mudar drasticamente a mentalidade universitária, a ponto de incidir em novas ações políticas que combatam em seu interior as formas de reprodução das gestões oligárquicas de poder, o produtivismo academicista estéril e um estado de letargia geral entre a categoria docente no que tange à luta por seus direitos. E um dos caminhos possíveis é o da concretização de uma autêntica autonomia universitária, em suas dimensões financeira, administrativa, científica, pedagógica e patrimonial, livre da submissão envenenada das epistemologias colonizadoras, das práticas racistas, dos poderes governamentais e das políticas empresariais e imperialistas.

Nesse sentido, outra proposição a ser alcançada é a de uma maior valorização e alcance geográfico uniforme de cursos de licenciatura no Brasil. A universidade deve ser engajada e assumir a responsabilidade na construção de um currículo progressista na formação de professores, articulado intrinsecamente com a educação básica para tratar das principais demandas da sociedade. Ou seja, dedicar-se a uma formação política sólida para estudantes, que repercuta na realidade social brasileira ao discutir temas como as desigualdades, a fome, o racismo estrutural, o capacitismo, o feminismo, a homofobia, a educação sexual, a cidadania, os direitos humanos, a democracia e a reforma agrária e urbana. Essas temáticas sobre o Brasil ainda podem ser inseridas nos currículos de todos os cursos universitários públicos num semestre inteiro, principalmente do meio para o fim.

Para que isso ocorra, é preciso denunciar e combater todo o sistema financeiro-rentista vigente no Brasil, responsável por se apoderar de boa parte da riqueza gerada pelo trabalho dos brasileiros para o pagamento de juros e amortizações da dívida, impedindo um maior aporte de recursos a serem aplicados em áreas como educação, ciência e tecnologia.

Por fim, evoco intelectuais públicos, como Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Milton Santos, que sempre se posicionaram a favor de uma universidade autônoma, independente, crítica, preocupada com os interesses nacionais e compromissada com a verdade. Defende-se aqui a instauração de uma universidade engajada no Brasil, potencialmente capaz de emancipar as próximas gerações das amarras subjetivas e concretas de um sistema voltado para a acumulação, que, como uma avalanche, a todo momento, insiste em nos transformar em coisas, nos manipular e desumanizar, a fim de que nos tornemos indiferentes diante das perversidades do mundo.

 

*Luiz Eduardo Neves dos Santos é doutor em Geografia e professor adjunto do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus Pinheiro. É diretor do Andes – Sindicato Nacional. É ainda pesquisador do Observatório de Políticas Públicas e Lutas Sociais da UFMA (OPPLS) e integra o Laboratório de Análise Territorial e Estudos Socioeconômicos da Universidade Estadual do Maranhão (Latese-Uema).

Fonte:Diplô Brasil-Luiz Eduardo Neves dos Santos