| O LENGALENGA DA CLASSE A |
Em cada gesto simples dos nossos dias o cobertor frio, tecido de gritos de dor de escravidão viva, bem viva, cobre a gente.
Pesado, acoberta pelo costume, faz de conta que tudo corre bem, feito rio limpo, feito coisa rara.
A maneira como a pessoa comum classe média, média alta, simplesmente alta, altíssima se dirige a outra pessoa comum, classe média, média baixa, simplesmente baixa, baixíssima se expressa banalmente aristocrática.
Assim sempre foi pra nós, filhos da colonização estupradora de índias, com a escravidão estupradora de negras arrancadas de outras terras, com o exílio estuprador de brancas e mestiças de além mar.
O caixa eletrônico quebra com o cartão do senhor dentro e ele berra, plenos pulmões, todo palavrão que conhece.
Sigo acuada na fila, ouvindo todo aquele espalhafato machista, matéria-prima dos nossos melhores palavrões – que eu também uso –, sofrendo porque não tenho palavra outra que expresse o sentido, que já é outro, claro, mas que quando brada o senhor do caixa eletrônico parecem ter só o sentido original mesmo.
O senhor classe A chuta a máquina e grita loucamente com um funcionário. Gritos de senhor pra escravo.
Ele saiu da área dos caixas eletrônicos e entrou na agência propriamente dita e agora tenho medo, ele marcha rápido, dedo em riste, imagino que possa dar um murro no cara do caixa.
Deixa ele pra lá, vamos pra outra cena!
O produto está vencido e a senhora classe A grita.
Com a moça do caixa, claro.
Outra berrou outro dia “quem vai juntar as cem laranjas que eu pedi? Não tem um funcionário que preste nessa merda?!”.
Cem laranjas.
Esse dia foi bom, os três funcionários que estavam por perto se olhavam rindo, com cara de “eu que não vou”, e um, o mais novato, acabou indo, puto da vida e sem disfarçar. Naqueles risos, pequenas vitórias.
O garçom, esse aí, nem um olho no olho na hora do pedido.
Sinto uma boa agonia quando vou a um restaurante e o garçom vem fazer meu prato. Se quero repetir, espero um vacilo deles pra fazer sozinha.
E aí, quando algum deles vê a cena bizarra, da cliente fazendo o próprio prato, corre desesperado, como medo de levar uma chamada, ser multado, sei lá, perder o emprego, porque não serviu o segundo prato da madame gulosa.
Chegou no prédio, senhora? Precisa nem pegar chave pra abrir portão, um funcionário faz isso por você.
Tem também o enigma das pessoas mais velhas e mais pobres, que chamam os mais novos e mais ricos que elas por “senhor” e “senhora”. O pedreiro que não recebe bom dia, o porteiro que também não recebe, mas recebe ordens de receber encomendas, entregar chaves pro sobrinho, consertar o cano por 10 reais.
O outro já passa de cabeça baixa mesmo e até leva susto quando recebe um bom dia, pensa às vezes que é cantada.
O outro não dá bom dia pra mulher, o marido pensa que é cantada.
A bandeja de cafezinho tem do lado dela aqueles cones pra depositar o copinho descartável, do menor e também do maior, mas eles estão vazios. Os copos sujos estão todos nas bandejas, esperando que alguém venha tirá-los dali e também lavar a bandeja, que está imunda.
A criança classe A cresce com o almoço servido, saindo da mesa correndo, deixando os pratos lá. Algum subalterno vai resolver. A roupa aparece lavada e passada e dobrada, por ação de geração espontânea.
Coisa linda, sobrenatural.
Vai pra Europa e lá aprende a lavar pratos. Mas esquece rápido quando volta.
Quando cresce e vai morar só, esbraveja, porque o serviço da empregada “está muito caro” e ele não pode pagar.
Limpar sua própria sujeira, catar suas próprias laranjas é um triste fim no país da escravidão.
KARINA BUHR CATA SUAS PRÓPRIAS LARANJAS E LIMPA SUA SUJEIRA, MAS MORA NUM PRÉDIO EM QUE O PORTEIRO ABRE O PORTÃO. TWITTER: @KARINABUHR
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