Regina Casé é samba, é funk, é pop, é rock, é cobertura no Leblon, é laje na favela do Vidigal, é Saara, é Oscar Freire, é Rio de Janeiro, é São Paulo, é Porto Alegre, é Manaus, é Tina Pepper, é Darlene, é Carlotinha Bimbatti e, agora, também é Val. Ela é plural, feita da mesma mistura que o Brasil traz de norte a sul. Aos 61 anos e com mais de 40 de carreira em teatro, cinema e televisão – que teve início em 1974 com o premiado grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone –, Regina contabiliza mais um êxito profissional em seu extenso currículo, seja como atriz, seja como apresentadora: o sucesso de Que horas ela volta?, que estreia por aqui dia 27 deste mês. No filme, dirigido por Anna Muylaert – já distribuído para mais de 20 países, entre eles França, Itália, Espanha, Alemanha e Reino Unido –, que apresenta um misto de drama social e comédia de costumes, a atriz dá vida a Val, babá que deixa sua filha pequena no interior de Pernambuco para tentar a vida em São Paulo. Após 13 anos cuidando do menino Fabinho, a personagem, que convive com a culpa de não ter participado da criação da filha, se reencontra com a menina, já adolescente. Por esse papel, Regina conquistou, no início do ano, o prêmio de melhor atriz na seleção World Competition, no Festival Sundance.

À frente do programa dominical Esquenta!, que mistura música, dança e informação e está no ar, na Rede Globo, desde 2011, Regina comemora 15 anos de exibição do Um pé de quê?, atração do canal fechado Futura, que mostra a diversidade da flora brasileira. O mês de agosto também será marcado pela reprise da novela Cambalacho– televisionada em 1986 e agora na grade do canal pago Viva –, na qual a artista deu vida à barraqueira Tina Pepper, dona do hit Você me incendeia.

Filha do diretor de TV Geraldo César Casé e neta de Ademar Casé, um dos pioneiros do rádio no Brasil, Regina nasceu em 25 de fevereiro no Rio de Janeiro, em pleno Carnaval de 1954. Não tinha como ser diferente: a festa, assim como a arte, está no sangue e na alma da artista. Fato é que poucos nomes do entretenimento brasileiro se firmaram como o de Regina Casé. Sorte a nossa que ela seja assim: alguém que mira o novo, divide o conhecimento com todos e celebra as diferenças.

Como foi dar vida a Val em Que horas ela volta? O que ela despertou em você?
Foi ótimo, porque acho que conhecia muito bem aquele tipo de personagem. Conhecia ela não só em seu trabalho, mas também dançando forró, ela na favela, ela em Pernambuco, no Nordeste. Conhecia muitas facetas dela e tudo isso talvez eu fosse guardar para mim para sempre. Foi uma oportunidade ótima de poder botar isso para fora.

Mesmo já conhecendo a personagem, você se preparou para o papel de alguma forma especial?
Com a Anna [Muylaert], fiz uma semana de preparo; muito mais para os atores se conhecerem. O resto são anos e anos viajando pelo Brasil e, ao mesmo tempo, morando em um apartamento de classe média em Copacabana, que produz aquela situação, aquele mundo.

Você acha que essa relação entre o patrão e a empregada – no filme, abordada de forma leve e delicada – ainda é um assunto espinhoso para algumas pessoas?
Acho que ainda é muito espinhoso, mas acho que cada vez menos. A gente tem que não só lutar, mas também incentivar todos para que lutem para esses direitos serem conquistados o mais rápido possível. Porque um trabalhador doméstico tem de ter os mesmos direitos de um trabalhador que trabalha em uma fábrica ou em uma empresa ou em algo qualquer.

O que a relação entre a Val e a família que ela cuida pode dizer sobre nós, brasileiros?
Acho que diz coisas terríveis e coisas boas também. Porque, não sei se por acaso, acabei de ver aquele filme Samba, e também fiz um programa que chamava Minha periferia é o mundo, além de Central da periferia e Minha periferia. E estive muito no que seriam as favelas de grandes cidades da Europa. É muito diferente. Mas, ao mesmo tempo, aqui pode ser mais nebuloso – em muitos aspectos, mais opressor –, as coisas são muito mais complexas. As relações de poder não são tão simples e as de afeto também não, como quando se fala “eu odeio o patrão, o patrão despreza a empregada”. Acho que tudo isso é muito mais emaranhado e complicado do que em outro país.

De que forma?
Quando você vê lá – e eu acho que os europeus ainda se chocam muito com essa realidade no Brasil –, eu ia a esses lugares e ficava impressionada. Não era nem uma cidade dormitório. Era quase uma caixa de ferramentas onde aqueles imigrantes, que nem ao menos eram considerados franceses, iam dormir. É claro que aqui é terrível. A gente se assusta com o fato de que, hoje em dia, em muitas casas, a situação ainda seja tão injusta, degradante. Mas, ao mesmo tempo, acho que tem uma complexidade que em outros lugares não tem, uma troca cultural, uma troca afetiva que em outros lugares não há. E isso, claro, sob esse guarda-chuva da opressão, da desigualdade, da injustiça.

Além dessa relação, que outras questões vocês quiseram trazer à tona com o filme?
Acho que a Anna quis mostrar uma situação que vinha se perpetuando há anos e que, naquele momento, estava começando a mudar muito no Brasil. Por exemplo, a filha é a primeira geração que chega à universidade. A filha, ela diz que vai buscar na rodoviária, mas a menina fala: “Não, estou no aeroporto”. Acho que ela quis falar sobre esse momento de mudança.

E você acha que esse momento já passou? Em que pé estamos hoje?
Sim, acho que nem é mais o momento que o Brasil está vivendo. Achava que o filme seria o jornal do dia. Mas o Brasil foi mudando tanto que já acho que é o jornal da semana passada. Mas o filme ainda tem um otimismo que hoje em dia não está tão presente.

E você se considera uma pessoa otimista?
Eu sou, estruturalmente, uma pessoa otimista.

Em relação ao Brasil também?
Em relação a tudo, porque acho que a felicidade não pode estar nem no passado nem no futuro, ela tem de estar no presente. Não dá para você ficar o tempo todo falando: “Devia ser assim”, “Devia ser assado”, “Assim não está bom”. E uma coisa que não acho que ajuda muito a crise é você, o tempo todo, falar que está em crise ou anunciar a crise. Acho que você tem de ir buscando, o tempo todo, soluções. Não quero perder um dia da minha vida sentada em cima de uma coisa, olhando e falando: “Que droga”.

E o que o Brasil significa para você?
Como atriz e apresentadora, tenho de repetir todos, o Camões, o Caetano: “‘Minha pátria é minha língua’ totalmente”. Eu vejo, às vezes, as pessoas falando: “Ah, vou morar fora” ou não sei o quê. Para mim, essa ideia é muito difícil e muito... não digo nem remota. Não consigo conceber, imaginar isso, porque o meu primeiro programa chamava Brasil Legal, depois veio Brasil Total. Tentar entender qual é essa diferença do Brasil, porque é que no meio desse caos de injustiça e de desigualdade a gente consegue ser tão diferente e tão atraente para os outros, mesmo quem está vivendo em situações que parecem ser impossíveis de suportar... Ainda assim, aquelas pessoas têm uma alegria, uma força, uma vontade de viver e um sorriso. A minha vida tem sido buscar de onde vem essa alegria.

Como é apresentar toda a diversidade que existe neste país, mostrar tudo isso na TV e, consequentemente, atingir boa parcela do Brasil e até do mundo?
Isso é o mais importante, porque tem que usar muito a palavra “tolerância”, mas, infelizmente, acho que as pessoas vêm ostentando mais preconceitos, mais intolerâncias. A gente está em um momento muito difícil de diálogo entre as mais diversas partes. Acho que o que procuro em um programa, em geral, não é apenas a tolerância; o que busco com o Esquenta! é celebrar a diferença.

Esquenta! é considerado por muitos um programa voltado para pessoas de classes mais baixas, mas na verdade ele fala com o Brasil todo. Por que você acha que existe esse tipo de pensamento?
Fico muito triste que ele tenha essa leitura, que penso ser incorreta, porque é o seguinte: quando ele dá voz a tantas pessoas de classes mais baixas – e isso é incomum –, as pessoas tomam isso como um todo, como o absoluto. Não é! Você vê o tempo todo no programa: tem pessoas com grana, sem grana, pessoas brancas, pessoas negras. Na verdade, o que a gente busca é representar o todo e o todo misturado. Ele não é, de jeito nenhum, segmentado e nem a gente quer isso.

Você se considera uma pessoa do povo? Alguém “popular”?
Essa palavra é muito vaga. O povo. Quando você fala “o povo brasileiro”, é todo mundo. Quando você diz “popular”, às vezes, tem certo preconceito e é pejorativo, que é uma coisa barata: ingressos populares, assentos populares. “Popular”, infelizmente, muitas vezes vem com uma conotação negativa.

Por quê?
Popular no sentido, por exemplo: a letra da música que o Gilberto Gil fez para mim, com o Arlindo Cruz, que muito me honrou, diz assim: “Alô Regina! / É tão gente fina que sabe chegar / Em qualquer esquina / Lá na cobertura, na laje ela está / É quem domina / Porque tem a sina de ser popular”.Sempre estive em um papel de ponte, de mediação interclasses, de mediação inter-religiões, intercor, intergêneros musicais. Acho que sempre estive nesse lugar da cola, da ponte, da mediação. E acho que isso acabou me tornando popular.

Você transita entre a laje em uma comunidade e a cobertura no Leblon. Esse seu contato com pessoas de todos os mundos já foi alguma vez alvo de preconceito? Há muitas cobranças em relação ao seu status social?
Sempre tem e acho um raciocínio muito simplista: por que é que uma pessoa que mora no Leblon não pode ir à favela? Inclusive, tem favelas no Leblon: o Vidigal. A Gávea, ao lado da Rocinha. Isso não significa que eu não possa ter amigo de outra classe social, não possa ter amigos de outra cor, não possa ter amigos que morem em outro bairro, que não morem no meu prédio ou em meu condomínio. Minha mãe, meu pai, meu avô e minha avó não me ensinaram assim. O que vai fazer você ser amigo de alguém é você ter um interesse em comum, é você ter curiosidade pela vida dele, você ter afeto, você ter amor, você ver qualidades de caráter dele e isso, para mim, não está onde ele mora, nem de que cor ele é, nem em quanto ele ganha.  Portanto, se tenho amigos variados, circulo por lugares variados. É que acho que as pessoas passam a vida inteira convivendo com quem elas conheceram no colégio ou no bairro ou no clube. E aí são pessoas todas iguais a elas: da mesma classe social, cor de pele e com o mesmo nível de instrução. Só que acho isso empobrecedor, acho isso pouco. Eu quero circular por qualquer lugar e conhecer pessoas dos mais diferentes tipos e interesses.

E de que forma a sua vida pessoal e a sua vida profissional se misturam e convergem?
É totalmente misturado! Sempre foi assim. Primeiro, já trabalho com amigos: eu trabalho com o Hermano [Vianna] há 30 anos, com a Monica Almeida há 25 anos, com o Guel [Arraes] há 30 anos. São as mesmas pessoas e isso quer dizer que elas são muito boas de trabalhar e eu também (risos).

Você é muito boa de conversa, mas em algum momento bate uma timidez? Quando isso acontece?
Quando preciso tirar fotos (risos)!


É mesmo?
Fico muito tímida! Digo que toda modelo tem de ser atriz, mas nem toda atriz tem de ser modelo. Eu, por exemplo, tenho pavor. Porque acho que o que eu faço bem é falar, me expressar e me movimentar.

Você sempre foi de falar bastante e se expressar? Isso vem desde quando você era criança?
Sim! Ganhava muito dinheiro no domingo, no almoço na casa dos meus avós, porque tinha um tio que me pagava para ficar quieta por cinco, dez minutos (risos).

Alguma vez algum entrevistado ou alguém que você conheceu te fez tremer na base, te deixou nervosa?
A Maria Bethânia, por quem tenho uma admiração tão grande! Ela nunca vai a programa nenhum e ela não só foi como dançou, sambou no Esquenta! [que foi ao ar no dia 20 de março de 2011]. Ela estava ali, e eu não queria que nada desse errado. Tremi na base, porque gosto muito dela, tenho muita admiração. Mas deu tudo certo e ela adorou – graças a Deus!

O que mais te emociona hoje e continua te movendo?
Tenho uma frase que eu e a Monica [Almeida] repetimos, é quase um bordão: “Gente, o Brasil não cansa de nos surpreender”. A gente passou os últimos 15 anos mostrando que a produção cultural não estava mais no centro, e sim na periferia. Aí, quando caiu essa ficha, vi que isso também já não valia mais. Porque, antigamente, tudo era produzido nas grandes cidades e quem morava no campo, no interior, era o cafona, o jeca. Mas, agora, tudo é um pouco do interior: o dinheiro, a comida, a música, a inovação. Hoje em dia, a cidade está imitando o interior. Então, sempre que acho que já cheguei a algum lugar, tem alguma coisa que me surpreende.

E o que te dá mais prazer na vida, tanto profissional quanto pessoalmente?
Descobrir gente nova, coisas novas, lugares novos. Sou muito curiosa! Adoro descobrir alguém ou alguma coisa ou algum lugar e adoro celebrar essa descoberta e dividi-la com outras pessoas. Celebrar a diferença, que é o que a gente vem fazendo.

Neste ano, o Um pé de quê?completa 15 anos. De que forma o programa mudou a sua relação com o meio ambiente?
Já fui fazer o programa porque gostava muito desse assunto e queria ter tempo para me dedicar, para estudar, o que ainda não tinha feito. Então, eu o inventei meio que para isso. Só que acabei aprendendo muito mais do que eu poderia imaginar, indo a lugares muito mais remotos e tendo uma dimensão muito mais clara da nossa relação com a natureza.

E o mês de agosto será marcado pela volta de Cambalacho, reprisada agora pelo canal Viva...
Está sendo uma delícia. Achei ótimo rever. Foi animadíssimo!

Sua personagem, Tina Pepper, marcou época e é sempre relembrada. A que você atribui todo o sucesso dela?
Primeiro, sou muito grata ao Silvio de Abreu. E, às vezes, falo: “Será que eu devia ter ficado fazendo só novela?”. Porque foi, praticamente, a única novela que eu fiz inteira, e foi um sucesso tão grande, uma personagem tão legal. Mas, ao mesmo tempo, acho que isso que fui fazendo depois, mais na parte social, documental, de mostrar o Brasil e as pessoas, se não fosse eu, não sei quem iria fazer. E atrizes, nós temos ótimas. Mas tenho muita gratidão ao Silvio, porque essa personagem, até hoje, me dá muitas alegrias.

Aliás, como você acabou indo para esse lado de pleno envolvimento da arte com um engajamento social muito forte?
Eu não acabei indo, acho que sempre estive desse lado, até nos meus papéis na ficção: a Dona Darlene, no Eu Tu Eles; a Tina Pepper, que era uma menina da periferia de São Paulo, pobre, preta. A Dona Darlene era nordestina, cortadora de cana. Agora, a Val, em Que horas ela volta?, uma empregada doméstica, nordestina, pernambucana. Tenho muito orgulho de que o povo tenha me aceitado, me legitimado como alguém que o representa, como uma porta-voz. Tenho muito orgulho disso.

Recentemente, entrevistei o Andrucha [Waddington] e ele me falou que te considera uma sucessora do Chacrinha. Como você analisa sua participação na televisão, já que você tem uma importância tremenda na identidade cultural brasileira?
Muito obrigada! Eu estava muito acostumada a trabalhar já no teatro e na televisão com o Guel [Arraes] e o Hermano [Vianna]. Estamos juntos em todos os projetos; às vezes, variam uma ou duas pessoas. Então, sinto muito que é um grupo e que esse grupo sempre esteve no papel da transgressão, no papel de esticar a corda – até onde a gente pode ir –, no papel da televisão como serviço, no papel da televisão com compromisso social, mas tudo isso sem ser chato, quase sempre com humor, com entretenimento e diversão. E muita educação. Tem um aspecto que acho muito interessante, que é como eu fui parar no canal Futura, que é um canal educativo. Eles fizeram, ao inaugurar o canal, uma pesquisa grande para saber qual o programa educativo de que as pessoas mais gostavam: gente comum, professores, alunos da rede pública, todos votaram. E o programa mais escolhido, na ocasião, foi o Brasil Legal. Foi por isso que eles me convidaram para ir para lá. Então, é muito bacana ver que um programa que passava na TV Globo, uma TV aberta, era visto por tanta gente como um programa de educação. E nem por isso ele deixava de ser entretenimento.

De todos os programas que você já fez, qual te deixa com mais saudade? 
Saudade? Tenho saudade de quase todos (risos)! Acho sempre que o que faço agora é uma correspondência. Se eu pensar, o Esquenta! é uma correspondência até do [grupo teatral] Asdrúbal [Trouxe o Trombone], porque acho que você não pode ficar parado. Há aquela velha frase: “Para ser o mesmo, você tem que mudar o tempo todo”.
FONTE:Revista Cultura