Em Berlim, há pouco mais de 25 anos, a queda de um muro serviu como símbolo mundial do encerramento da Guerra Fria e esperança do fim da divisão entre sociedades. Mas há outros – visíveis e invisíveis – que não foram derrubados ou que estão sendo construídos, como na Hungria, por exemplo
Se pensamos em barreiras visíveis, a existência do Muro de Berlim é um acontecimento memorável. Foi construído em 1961 pela Alemanha Socialista (RDA) para impedir a fuga das pessoas insatisfeitas com o regime. Durante os 28 anos de sua existência, cerca de cem mil cidadãos tentaram fugir do país e mais de 600 foram executados por soldados nas fronteiras. Essas pessoas buscavam a liberdade prometida pelo ocidente capitalista e arriscavam a vida tentando cruzar o muro com arames farpados no topo e extensões laterais vigiadas por soldados que tinham ordem de execução.
Esse muro não existe mais. Em 2015, porém, ainda vemos muitos outros, visíveis ou não, espalhados pelo mundo e tão ameaçadores quanto o próprio muro de Berlim. A notícia mais recente e alarmante veio da Hungria, país que, argumentando sua proteção, anunciou a construção de um muro com aproximadamente 150 quilômetros de extensão e quatro metros de altura na fronteira com a Sérvia, para evitar a entrada de imigrantes pela “rota dos Balcãs”. Apenas entre 2012 e 2014, o número de pessoas que tentou cruzar a fronteira por essa rota passou de 2 mil para 43 mil.
Na Alemanha, o movimento Pegida (sigla em alemão para “Europeus patriotas contra a islamização do Ocidente”) tem levado milhares de pessoas às ruas para protestar contra a imigração e pela defesa da cultura e da economia europeias. Já políticos conservadores defendem que refugiados visam a Europa apenas pelo benefício social de cerca de 140 euros (520 reais) concedido pelos países europeus. Já os países conhecidos como “portas dos fundos” da União Europeia (por estarem geograficamente mais acessíveis aos refugiados) não querem arcar sozinhos com os custos de recebê-los. De acordo com o Tratado de Dublin III, quem chega à Europa nessa condição deve permanecer no país onde primeiro pisou.
Enquanto isso, ativistas, jornalistas e refugiados criticam as políticas de imigração vigentes da União Europeia e alertam para a existência de muros ainda mais perigosos que o próprio Muro de Berlim. É o caso de Trésor, refugiado que ajudou a fundar a Voix des Immigrants (“Voz dos Imigrantes”), uma associação que luta pelos direitos dos imigrantes e articula contatos entre ativistas e refugiados em diferentes países europeus. “Passei dez anos nas fronteiras europeias até chegar à Alemanha. Nesse trajeto, aprendi a transformar meu trauma em ativismo”, conta ele. Chegar ao país, no entanto, não significa entrar no paraíso. Em alguns Estados federais alemães, os requerentes de asilo vivem em alojamentos e não podem sair da cidade que lhes foi designada pelo Estado. Com mobilidade reduzida, sem direito ao trabalho e vigiados, muito deles aguardam anos nessa condição até que alguma decisão sobre sua permanência seja tomada.
APARENTES
O muro localizado na fronteira dos Estados Unidos com o México tornou-se símbolo da política anti-imigração norte-americana. Em 2002, Israel também começou a construir um muro de 760 quilômetros para se separar dos territórios da Cisjordânia. O argumento foi a proteção contra o terrorismo, mas críticos veem esse muro como segregação.
Na fronteira com a África, a Espanha ergueu uma barreira com cerca de 20 quilômetros de extensão. E ali, entre Ceuta e o Marrocos, centenas de africanos põem suas vidas em risco para chegar à Europa. Recentemente, funcionários do aeroporto se assustaram ao ver, durante a inspeção de uma mala, que ali dentro havia uma criança de 8 anos. O pai vivia ilegalmente na ilha espanhola de Fuerteventura e teve rejeitados os seus pedidos de visto. Mas o menino africano e seu pai são apenas um exemplo de pessoas que, de modo semelhante aos que fugiam do comunismo, ainda hoje arriscam as suas vidas tentando atravessar essas fronteiras que segregam. A Agência da ONU para Refugiados reporta que, apenas nos primeiros meses de 2014, mais de 87 mil pessoas chegaram à Itália pelo mar Mediterrâneo provenientes da Eritreia e da Síria, atualmente em guerra civil.
E muitos morrem antes mesmo de chegar. Em 2013, o naufrágio de uma embarcação próximo à ilha de Lampedusa, na costa italiana, é um dos exemplos que jamais serão esquecidos. O barco transportava cerca de 500 imigrantes, dos quais apenas 155 sobreviveram. A tragédia ganhou repercussão internacional, deixando clara a necessidade de dirigentes europeus olharem com atenção para o tema.
NO BRASIL
Recentemente, a imigração também passou a ser debatida como mais uma dentre as muitas outras barreiras segregadoras existentes no Brasil. Desde a última década, o país atraiu mais de 200 mil imigrantes, principalmente latino-americanos, que arriscam a vida para chegar e, ao entrar, aceitam condições degradantes de trabalho.
Os haitianos chegam ilegalmente pelo Acre. Esse crescente fluxo de pessoas ganhou força após o terremoto que devastou o país caribenho em 2010, matando milhares. Há pouco mais de um mês, o ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou negociar com os países latino-americanos vizinhos leis para restringir a entrada de imigrantes ilegais.
Já os bolivianos que vêm ao Brasil para trabalhar, geralmente, nas fábricas têxteis de São Paulo, são frequentemente cooptados no país de origem. Grifes conhecidas, como a Zara, já foram autuadas por manterem em seus galpões imigrantes bolivianos em condições de trabalho semelhantes à escravidão. E quando estes moram na metrópole, vivem segregados do restante da população.
A existência de muros – visíveis e invisíveis – no Brasil não é um fato novo. Suas origens remontam à própria formação social do país, como a divisão entre casa-grande e senzala durante a escravidão colonial. Existe um muro quando se culpa um dependente químico ou um morador de rua por sua própria condição. Quando se ignora como vive o zelador do prédio ou a empregada doméstica. No Brasil, os muros são essa falta de empatia entre as classes sociais, que levam o indivíduo a ficar isolado em seu círculo de convivência.
E os muros físicos estão especialmente visíveis em nossa sociedade. Na Idade Média, muros cercavam castelos, fortalezas e burgos com a função de proteger contra um inimigo externo. No Brasil contemporâneo, as cercas elétricas, os muros com cacos de vidro e as grades pontiagudas cercando casas são barreiras contra inimigos que não se sabe ao certo quem são. Essas barreiras passaram a ser algo natural para muitos, mas chamam a atenção dos turistas que nos visitam. E ainda há os condomínios fechados. Christian Russau, jornalista e membro da associação Kooperation Brasilien (Cooperação Brasil), uma rede de organizações, pesquisadores e pessoas engajadas que desenvolvem atividades e publicações sobre o Brasil na Alemanha, começou a interessar-se pelo solo tupiniquim há mais de dez anos, quando conheceu o país e percebeu essas divisões. “Tive um choque ao entrar em um condomínio fechado pela primeira vez. Fiquei espantado ao descobrir que lá havia um elevador para uso exclusivo de empregados e outro destinado apenas ao uso de moradores. Aquilo era um muro visível.”
Hoje, Russau, antigo morador da Berlim Ocidental, é também editor da RevistaLateinamerika Nachrichten (Notícias da América Latina), um veículo de mídia alternativa na Alemanha que reporta sobre temas relacionados aos países latino-americanos. Em seu cotidiano, o jornalista diz que busca derrubar muros contando as múltiplas e diversas realidades. “É preciso deixar as pessoas simples falarem, dar voz aos que estão atrás desses muros visíveis ou invisíveis.”
POR MAIS PONTES
Se não é possível derrubar todos esses muros, talvez seja possível pensar em ações que funcionem como pontes. É o que querem os integrantes do Flüchtlinge Willkommen (Refugiados, Bem-vindos), uma ideia que começou quando três jovens alemães se uniram para receber refugiados como colegas na república de estudantes. Espontaneamente, sem esperar por medidas oficiais.
O jovem Jonas Kakoschke, idealizador da iniciativa, não só decidiu dividir o seu apartamento, como também facilita, por meio de uma página na internet, o contato entre as pessoas dispostas a abrir as suas casas aos que chegam à Europa em busca de asilo. Dessa forma, um pode conhecer melhor o outro através do diálogo e da convivência cotidiana, e das trajetórias que se cruzam podem resultar realidades melhores. Ainda assim, ele não quer interpretar a sua ação como uma ponte. Em sua visão, cabe ao Estado criá-las: “Ele que deve ser a ponte, nossa ideia é derrubar os muros que estão na cabeça das pessoas”.
E hoje, em seus percursos pelas ruas de Berlim, atravessando os lugares por onde há 25 anos o muro passava, atualmente demarcado por paralelepípedos que, às vezes, os turistas nem percebem, Christian Russau segue seu trabalho. Ele acredita nas possibilidades de derrubar muros que ainda segregam, mas cita Guimarães Rosa, que diz: “Eu atravesso as coisas e no meio da travessia não vejo (…) o real não está na saída nem na chegada. Ele se dispõe para a gente no meio da travessia”.
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