| “Todos os lugares na Síria estão em guerra”, diz Amina, à esquerda; ainda assim, jovem quer voltar ao país |
Eles fugiram de 28 cidades na
Síria, todas destruídas pela guerra que afeta o país há mais de quatro
anos. Há dois meses, vivem juntos nos andares mais altos de um antigo
prédio comercial, recém-ocupado por famílias sem-teto.
Longe de
milícias, rebeldes armados e exércitos, esses 51 árabes - incluindo
sírios, palestinos, egípcios e uma marroquina - tentam recomeçar suas
vidas em um bairro de nome sugestivo no centro de São Paulo.
Estão
na Liberdade – depois de cruzarem a fronteira síria, passarem pela
Embaixada brasileira no Líbano, fazerem escala nos Emirados Árabes,
aterrissarem em Guarulhos e tentarem, em vão, vagas em abrigos públicos e
hotéis baratos na região do Brás.
Líder no ranking de países que
mais recebem refugiados de guerra na América do Sul, o Brasil promete
ampliar a emissão de vistos para refugiados de países em guerra. Mas
estes estrangeiros reclamam de dificuldades - especialmente em São
Paulo, onde o valor dos aluguéis dobrou nos últimos sete anos (a
inflação no período foi de 54%).
À BBC Brasil, eles narram a
tristeza da perda de pessoas queridas para a guerra, as dificuldades
para recomeçar a vida do outro lado do mundo e revelam esperança - tanto
no futuro no Brasil, quanto em reerguerem um dia suas velhas casas.
Duplo exílio
Nos
salões de piso gasto de madeira, onde já funcionaram firmas de
advocacia e contabilidade, os estrangeiros dormem em colchões
distribuídos pelo chão, próximos a malas que cruzaram oceanos com
roupas, café, cigarros e o Corão, livro sagrado do islã.
A precariedade do prédio ocupado por mulheres de véu
e homens com marcas do front de guerra é compensada com organização
pelos novos moradores.
Costume árabe, ninguém anda de sapatos
dentro do salão. Os colchões têm roupa de cama esticada, a louça está
lavada e camisas são enfileiradas em um cabide velho de loja.
Somos recebidos com "Salaam Aleikum" (saudação árabe) e chá preto servido em copos de requeijão.
A
pequena Falasten, de 10 anos, arrisca o português: "Bom dia", "Sejam
bem-vindos". Mas o idioma predominante ali é o árabe – interrompido por
frases vagas em inglês, aprendidas na escola, quando não havia guerra.
A
maior parte destes refugiados tem origem palestina e vivia no perigoso
campo de Yarmouk, nos arredores de Damasco, capital síria.
Segundo
a ONU, 18 mil pessoas resistem hoje no local "sob constante ameaça de
violência armada, sem condições de acesso a água, comida e serviços
básicos de saúde".
Para alguns dos mais velhos, o pouso em São
Paulo representa um segundo exílio. Antes de se mudarem com as famílias
para a Síria, eles viveram encurralados sob o fogo cruzado entre
israelenses e palestinos.
'Sinto falta da minha respiração'
Amina não vai à escola há três anos por conta da guerra.
No
período, ela viu amigos e dois primos morrerem e precisou dormir com a
família em tendas improvisadas após bombardeios destruírem sua casa.
"Todos
os lugares na Síria estão em guerra", sussurra a jovem, coberta por uma
túnica de flores brancas que só deixa ver seu rosto, suas mãos e seus
pés. Ainda assim, com sorriso triste, diz querer voltar.
Junto ao
pai (que trabalhava como comerciante na terra natal), à mãe e a seis
irmãos, ela está no Brasil há duas semanas – e, como as irmãs, nunca
saiu sozinha do salão onde dorme sem qualquer privacidade.
"Sinto falta da vida", diz Amina, agora com voz forte, em uma
escalada que só é interrompida pelo choro. "De meus amigos na Síria.
Meus parentes na Síria. Todo mundo na Síria. A vida na Síria. Minha
respiração na Síria. Meu coração na Síria."
Sua mãe, Hiba, primeiro sorri. Depois chora também.
Entrar no Brasil
"Só o Brasil
me deu visto. Só", conta o cozinheiro Mohammed, em frente a dois maços
de Marlboro Light com dizeres em árabe. "Não o Líbano, não a Turquia,
não a Europa, não a Arábia Saudita. Só o Brasil."
Como a maioria
dos colegas - entre eles economistas, comerciantes, chefs de cozinha e
até um mergulhador -, ele não consegue emprego com carteira assinada e
admite que preferiria a Europa ao Brasil. "É melhor, tem mais dinheiro.
Mas é mais perigoso."
No Brasil, diferente de países europeus como Alemanha, o governo federal não oferece ajuda financeira a refugiados de guerra.
A
lei de refúgio brasileira, de 1997, considera a "violação generalizada
de direitos humanos" para o reconhecimento de refugiados, seguindo a
Declaração de Cartagena sobre a Proteção Internacional de Refugiados, de
1984.
No caso específico da Síria, o Conare (Comitê Nacional para
Refugiados, ligado ao Ministério da Justiça) facilita oficialmente a
entrada no país de fugitivos da guerra.
O procedimento se repete
diariamente: a Embaixada brasileira em Beirute, no Líbano, emite vistos
de turista válidos por 90 dias para pessoas de diferentes nacionalidades
que vivem na Síria.
Assim que chegam ao Brasil, eles são
orientados a procurar a Polícia Federal para darem entrada em seu pedido
de refúgio (que demora até dois anos para ficar pronto).
O
pedido, entretanto, gera imediatamente um protocolo, que já permite aos
refugiados tirar documentos como CPF e carteira de trabalho antes mesmo
do visto definitivo.
Até o início da guerra, em 2011, só 16 sírios
viviam refugiados no Brasil, segundo a Acnur (agência das Nações Unidas
para refugiados). Hoje são mais de 2 mil.
Viver no Brasil
Os entrevistados dizem conseguir ganhar, no máximo, R$ 1 mil por
mês, em jornadas de trabalho que começam às 7h e terminam depois das
22h.
Com famílias de até 8 pessoas, eles dizem que precisam de
tempo até garantir os recursos necessários para pagar aluguel na cidade,
onde é difícil, mesmo na periferia, encontrar um único quarto por menos
de R$ 500.
A profissão mais comum é a de cozinheiro - o perfume de esfirras e doces
assados sobe pela escadaria escura do prédio -, além do ofício de
camelô.
Do salão onde dorme Abdel, além do cheiro de comida emanam acordes
acelerados de alaúde, instrumento de corda popular no Oriente Médio.
"Neste
momento, não penso em voltar para Síria", diz o músico profissional,
que no Brasil trabalha fabricando doces como barazeq (de gergelim e
mel), basboosa (bolo de trigo) e halwa (biscoito de gergelim e açúcar
derretido).
Ele vivia com parentes em um prédio de seis andares que foi bombardeado três vezes, até se reduzir a escombros.
"Ninguém sabe para onde caminha a guerra na Síria", diz.
'Navio negreiro'
Já
a caminhada até o prédio ocupado ocorreu pelas mãos de Hasan Zarif,
brasileiro de origem palestina, membro do Terra Livre, movimento que
defende o direito a moradias populares no país.
"Encontramos essas pessoas dividindo o segundo andar de sobrados
mínimos com mais de 50 refugiados", conta. "Então os convidamos a vir
para a ocupação. Depois que veio a primeira família, encheu em dois,
três dias, e agora temos mais 50 pessoas na lista de espera."
A
fila, explica Zarif, seria fruto da falta de vagas disponíveis em
abrigos públicos - onde a demanda de moradores de rua já supera a
disponibilidade de leitos.
"Quem está do outro lado sempre acha
que está fazendo um favor, um ato de bondade", diz a professora Rita de
Cássia do Val, consultora do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados.
"Mas não estamos falando de caridade, estamos falando de cidadania."
Para ela, há uma "fantasia" entre muitos empregadores de que
imigrantes aceitam qualquer tipo de trabalho, sob quaisquer condições.
"Muito
pelo contrário. Muitos têm nível de politização e formação maior que o
do brasileiro médio. E esses sujeitos não podem admitir serem tratados
de maneira indigna."
Ela lembra que os refugiados "são mais gente consumindo, pagando
impostos e trazendo novas experiências culturais e profissionais ao
mercado".
O mesmo vale para os que ainda não encontraram emprego
formal. "A carga tributária no Brasil é altíssima. Um vendedor de
guarda-chuvas na porta do metrô também paga imposto quando compra uma
coxinha."
Sobre uma suposta "competição" com nativos por empregos,
Val diz que a crise dos refugiados abre espaço para que o mundo
"repense conceitos antigos" de limites territoriais.
"Não dá para
construir muros, tudo o que acontece no vizinho ou num pais distante vai
me impactar", diz. "Os setores produtivos dependem dos imigrantes. Se
todos forem embora, os países param."
As dificuldades para a
validação de diplomas profissionais e o preconceito entre empregadores é
a mesma, no Brasil e no exterior, diz a professora.
"É preciso
que se saiba que os refugiados não são escravos nem representam novos
navios negreiros. São apenas trabalhadores que querem trabalhar,
dignamente, como eu e você."
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