De um lado, a defesa de um estado desenvolvimentista, social e
democrático. Do outro, o estado neoliberal autoritário, antipopular e
antinacional
por Roberto Amaral
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publicado
18/03/2016 16h34
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| Juristas em encontro na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, em São Paulo |
A corrupção não se combate corrompendo a Constituição”
André Augusto Bezerra, presidente da Associação dos juízes para a Democracia
A operação golpista está em marcha e, agora, fortalecida pelo apoio
de extratos mais ricos da população, promovido e exposto pelos grandes meios de comunicação, a televisão à frente de todos.
Está mais clara e mais explícita a opção protofascista, que se expressa na negação da política,
dos políticos, dos partidos, da via democrática, enfim. Coroando o
festival de aberrações, essa opção se faz ainda mais clara na
recuperação do discurso autoritário e, consequência, rescaldo seu, na
opção pela intolerância que logo transmuda para a violência física
covarde que muito nos lembra os pogroms dos camisas pretas
(coincidentemente ou não, um símbolo que ressurge) da infância do
hitlerismo e muito comum em todas as hipóteses de fascismo.
Nas ruas, sobre a crítica à politica econômica (afinal, não estamos
sob recessão em face de uma onda de desempregos?) destacou-se o discurso
moralista e punitivo ao lado de aplausos às mais grotescas
representações do atraso.
Fundem-se a espetacularização das operações da Operação Lava Jato
com a campanha generalizada contra os políticos – que, resumidamente e
simplificadamente, ‘representam tudo o que de mal está aí’.
Destaca-se, em contrapartida, a louvação ao
“juiz-investigador-promotor-superestar”, o que por um lado reforça o
apreço por uma solução "extra-política",
até mágica, para o que seria o principal problema do País (a
corrupção), e por outro põe de manifesto uma disputa, por parte da
direita, pela narrativa da "Lava Jato": ela deve ser entendida, segundo
ela direita, fundamentalmente, como um expurgo do PT e da esquerda (aqui
reduzidos a representantes da política e dos partidos, abjurados), e
não como uma necessária ação de combate à corrupção, doa a quem doer.
Daí as denúncias seletivas, os processos seletivos, as delações seletivas, os grampos seletivos, os vazamentos seletivos.
O resultado é quase sempre o vazio político e como política e vazio
são categorias antípodas, esse vazio é logo preenchido, como se vê na
História. Recentemente a Itália das ‘Mãos limpas’ herdou Berlusconi e
nós mesmos, como fruto da campanha contra os marajás, tão bem levada a cabo pelo sistema Globo, tivemos que conviver, sem merecê-la, com a experiência Collor.
Em função do desdobrar da crise podemos, ao final da linha, já
proximamente ou em 2018, enfrentar a possibilidade de eleição de um outsider que poderá chamar-se Moro.
A tragédia brasileira caminha sob o silêncio respeitoso de liberais e
democratas que amanhã, se o passado se antepuser ao futuro, amargarão o
erro da omissão, como os que choraram em 1964 as picadas da serpente
que haviam irresponsavelmente cevado.
Inebriados pelo moralismo lacerdista e pela unanimidade da imprensa
de então, os liberais terminaram, pensando estar defendendo a legalidade
constitucional supostamente ‘ameaçada pelas reformas de base propostas
por Jango’, quando de fato estavam abraçando um golpe de Estado cujo
primeiro ato foi a revogação da própria Constituição e a implantação de
uma ditadura que nos atazanaria por longos 20 anos. E para não fugir à
regra, devorando seus principais arautos.
Trata-se, o que estamos a ver e lamentar, hoje, de ação
consabidamente concertada, com inequívocos apoios externos. Assim como
se viu nas revoluções coloridas e na primavera árabe, que reúne meios de
comunicação de massa liderados pelo sistema Globo, de vasta experiência
golpista, setores protofascistas da direita parlamentar, e as
corporações dissidentes da alta burocracia estatal, setores do
Ministério Público federal, Ministério Público paulista, Polícia Federal
e o Poder Judiciário, representado por um juiz de primeira instância
titular da 13ª Vara Federal do município de Curitiba, que exerce, com
apoio de instâncias superiores e aplausos corporativos, inédita
jurisdição nacional.
Por sinal, o mais recente ato desse juiz é peça essencialmente
política, produzida exatamente para interferir na política, agravando a
crise, crise que é buscadamente agravada, por ele e seus acólitos, a
cada dia, exatamente para destruir a política, implantar o caos que traz
consigo o apelo à ordem, que é, sempre, o pretexto para a derruição da
democracia.
É, desta feita, o golpe de Estado de novo tipo, em franca vigência em
nosso País, pois já vivemos sob as penas do direito da exceção, quando a
lei cede seu império à materialização do Estado de fato que substitui o
Estado de direito democrático. Se a ação não matou a filosofia, como
anunciou Mussolini, o direito de exceção aqui criou o estado de fato,
gerido por fora das instâncias constituídas pela soberania popular, as
únicas legítimas na democracia representativa e em qualquer modelo de
direito democrático.
No curso de uma história de grampos telefônicos não suficientemente
explicada, o juiz Moro decide, no exato momento do anúncio da nomeação
do ex-presidente Lula para a chefia da Casa Civil da presidência da
República, tornar públicas interceptações e diálogos telefônicos obtidos
mediante discutível legalidade, ignorando, que, por lei, o seu conteúdo
deve ser mantido sob sigilo.
Informado, tempestivamente, de que a interceptação gravara diálogo do
ex-presidente com a presidente Dilma, e gravara após o próprio juiz
haver mandado interromper a escuta, o juiz, sendo magistrado e não
parte, deveria enviar a peça ao STF, mas o que fez foi entregar a
gravação para a rede de televisão de que se fez colaborador fático.
Essa divulgação é por si só um ato politico e não jurídico (como
políticos são os ‘votos’ e Gilmar Mendes no STF) de claros objetivos
políticos, perseguidos com evidente abuso de autoridade.
Para atender a seus ímpetos facciosos ignorou a disposição legal que
manda que “a gravação que não interessar à prova será inutilizada”. Ora,
quase toda a gravação era irrelevante para o feito, mas foram trazidas a
público para criar dificuldades pessoais a Lula, tentando indispô-lo
com políticos e autoridades judiciais.
Fruto do abuso de direito, o ato do juiz-investigador despido da toga
de magistrado-julgador é ato político, pelo fato em si, pelo conteúdo e
pela oportunidade escolhida. Como que imbuído de paixão messiânica, o
juiz de primeira instância Sérgio Moro rasgou a fantasia e assumiu, sem
disfarces, o duvidoso papel de salvador da pátria.
Serve, hoje (muito embora o lamente publicamente), ao ódio e à
intolerância que explodem nas ruas, pelos quais não se sente
responsável, como não se sente responsável pelos seus atos, cujas
consequências politicas, econômicas, sociais não mede.
E não está só. Outro juiz federal que, diante da omissão conivente do Conselho Federal da Magistratura faz de sua presença no Facebook uma tribuna partidária antigoverno, concede liminar em mandado de segurança que visava a impedir a posse de Lula na Casa Civil.
O discurso da direita foi ampliado, não se limitando à rejeição à
presidente Dilma e ao PT. Os últimos protestos e os atos praticados por
agentes do Judiciário atingiram igualmente a imagem de Lula.
Com Lula no governo, o poder que parecia vazio revelar-se-ia
ocupado; o governo que parecia sem rumo passaria a ter um timoneiro e a
política sem estratégia passaria a dispor de um articulador trazendo à
sociedade a sensação de segurança. Foi tudo isso que o juiz curitibano –
agora com a colaboração de seu colega brasilense – intentou impedir
Por que a ofensiva contra Lula?
Porque ele é, hoje, a principal liderança de que dispõem as forças populares a) para a reaglutinação das esquerdas e b)
para uma possível disputa eleitoral, como consequência seja de eventual
cassação dos mandatos de Dilma e Temer, seja para as eleições de
2018. É inimigo que precisa ser abatido.
Esse quadro reforça o que tenho dito com insistência: o projeto em
curso não se limitará à eventual deposição de Dilma, pois, trata-se,
através de golpe de Estado de novo tipo, da captura do Estado, sem voto,
para implantar um governo politicamente autoritário, socialmente
regressivo e economicamente neoliberal-ortodoxo, pró-EUA, com as
consequências que não precisam ser explicitadas.
Enganam-se os que veem nesse concerto de episódios uma só tentativa
de surrupiar o mandato legítimo da presidente da República. Insisto: há
um golpe de implantação em marcha, cujo objetivo vai além da anunciada
troca de guarda: pretende mudar o eixo da economia e da política,
completando o processo de privatização das grandes agências estatais
como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica.
Amesquinhará o papel desenvolvimentista do BNDES e fatiará a
Petrobrás para que seja entregue aos grupos multinacionais, na bacia das
almas. Em qualquer hipótese deixará ela de desempenhar o atual e
essencial papel de âncora do desenvolvimento industrial brasileiro.
A independência do Banco Central garantirá segurança absoluta ao
capital financeiro, e o sangramento do povo, com juros extorsivos.
O novo eixo trará consigo o abandono do Mercosul e de iniciativas
correlatas e nossa submissão a qualquer alternativa do tipo Alca e
sepultará os BRICS. Na política externa renunciaremos a qualquer papel
de liderança e retornaremos aos tempos de FHC de alinhamento automático
aos interesses estratégicos dos EUA.
Renunciaremos a qualquer tipo de soberania, mas especialmente
renunciaremos a qualquer forma de programa nuclear e aeroespacial. O
Estado, livre da emergência das massas, renunciará a quaisquer políticas
de compensação social e levará a extremos a flexibilização das relações
de trabalho.
O neoliberalismo, por necessidade de sua lógica, implicará a
acentuação da recessão associada a juros altos, donde a queda maior do
PIB e o aumento do desemprego, os ingredientes perfeitos da crise
social, que demandará a repressão aos movimentos sindicais e populares,
pois que reagirão a essa política.
O que está em jogo é uma visão de mundo, o que está em disputa é, de
um lado, a defesa de um estado desenvolvimentista, social e democrático,
com inserção soberana em um mundo que quer ser multipolar, e de outro o
estado neoliberal necessariamente autoritário, antipopular e
antinacional, submetido ao jugo dos nossos irmãos do Norte.
A história terminou? Por óbvio que não, a não ser que tenhamos
renunciado ao combate. Afinal, como dizem os espanhóis, nunca está morto
que peleja.

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