COM QUANTOS RECUOS SE ATUALIZAM PROJETOS DE ESQUERDA PARA A SEGURANÇA PÚBLICA?

Enquanto a direita aprova seus projetos de lei em diferentes esferas de poder, o dito campo da esquerda progressista promove debates intermináveis sobre reformas e protocolos para a instituição policial.

“Não acabou / tem que acabar / eu quero o fim da Polícia Militar” foram palavras cantadas alto e bom som pelas ruas de diversas cidades brasileiras, nas cinco regiões do país, durante parte dos protestos realizados no ano de 2013. Pauta histórica dos movimentos sociais abolicionistas penais desde muito antes do período que passou a ser chamado de Jornadas de Junho, hoje é possível reconhecê-la em atividades organizadas pela Rede Nacional de Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado, em atividades da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), da Agenda Nacional pelo Desencarceramento e das Frentes Estaduais pelo Desencarceramento, para focar articulações representativas dessa “ponta esquerda”.

Já no âmbito da política institucional partidária, vale lembrar que a PEC 51/2013, assinada majoritariamente por senadores considerados de esquerda, proporcionou debates sobre desmilitarização abrangendo movimentos sociais e ONGs de um campo mais alargado da esquerda brasileira. A Proposta de Emenda sugeria alteração dos artigos 21, 24 e 144 da Constituição e acréscimo dos artigos 143-A, 144-A e 144-B, reestruturando “o modelo de segurança pública a partir da desmilitarização do modelo policial”. Diferentes interpretações sobre o que significava “desmilitarizar” se espalharam – a maior parte delas nada traziam do abolicionismo da “ponta esquerda”, mas a pauta ocupou o debate público. 

Em 2018, a PEC 51 foi arquivada. Hoje, no Senado, o chamado Bloco Parlamentar da Resistência Democrática (formado por PSB, PT e PSD) está ocupado na Comissão de Defesa da Democracia fazendo a relatoria de projetos de lei relacionados ao ocorrido em 8 de janeiro de 2023. Bem longe da desmilitarização das polícias, o país é palco do crescimento da militarização das escolas. Mesmo que em julho de 2023 o governo federal tenha revogado o decreto que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, governos estaduais conservadores seguem firmes no projeto de militarizar a educação pública. Enquanto cresce a militarização em diversas frentes, o debate sobre o controle das polícias parece um cachorro correndo atrás do próprio rabo.

São incontáveis as tentativas de controle das polícias idealizadas pela esquerda institucional, seja por meio da criação de protocolos de atuação, melhorias na formação policial, qualificação em direitos humanos, treinamento para abordagem humanizada e até mesmo o uso de equipamento menos letal. Nenhuma dessas estratégias resultou em diminuição da letalidade policial e nem mesmo no controle da atividade policial; pelo contrário, elas fortaleceram um discurso de investimentos em tecnologias de produção de morte e de vigilantismo, reforçando a criminalização e a estigmatização de grupos étnico-raciais não brancos.

Será que as ditas “forças progressistas” estão atentas à sua própria paleta de cores? As assimetrias de poder pautadas por marcadores de raça, gênero, sexualidade, classe e território estão sendo debatidas de forma concreta ou apenas nos projetos enviados aos financiadores? Quais corpos seguem sendo protegidos e quais são violentados pelas políticas de segurança pública? Essas questões são indispensáveis para avaliarmos distanciamentos e aproximações entre esquerda e direita quando o assunto é segurança pública.

O combate a criminalidade gera mais insegurança, principalmente, ao pensar nas políticas públicas ainda precárias no Brasil (Foto: Wikimedia Commons)

Pesquisadores e especialistas de segurança pública – sejam “de direita” ou “de esquerda” – têm um perfil específico: são em sua maioria homens brancos, cisgêneros, heterossexuais, cristãos, de classe média e moradores do asfalto. Divergem apenas em princípios ideológicos sobre a atuação das políticas de segurança pública; afinal, na prática, atuam para a manutenção de privilégios econômicos e simbólicos, reiterando a seletividade penal e a criminalização de corpos e territórios negros. Pesquisadores “de direita” não escondem seu real interesse na promoção do genocídio da população negra e em projetos para melhor controlar os corpos, e utilizam-se de produção acadêmica para embasar políticas cada vez mais repressivas, de “tolerância zero” à criminalidade, junto com o fomento de novas tecnologias para a produção de mortes. 

Enquanto a direita aprova seus projetos de lei em diferentes esferas de poder, o dito campo da esquerda progressista promove debates intermináveis sobre reformas e protocolos para a instituição policial. Afinal, lucram com a ideia de formação cidadã para a polícia, com a venda de modelos de gestão e a elaboração de dados mediados pelos interesses do Estado, acessando uma série de informações e bancos de dados das secretarias de segurança pública e programas de denúncias de violações de direitos humanos. Ademais, os cursos de segurança pública liderados por esses especialistas garantem pomposas cifras, inclusive para seus núcleos de pesquisa, por meio de convênios com as polícias e o Estado.

As universidades ocupam cadeiras importantes nesse debate – por meio tanto do corpo docente quanto do corpo discente. Uma situação extremamente atual nos permite ilustrar essa questão. Assistimos à eclosão de uma série de protestos estudantis nas universidades norte-americanas e europeias exigindo sanções ao governo genocida de Israel e pautando a urgência de desinvestimentos e boicote às empresas que financiam os ataques brutais ao povo palestino. Uma articulação internacional de estudantes em solidariedade ao massacre que o povo palestino está vivendo ganha fôlego na luta por responsabilização das instituições de ensino que estimulam a manutenção do apartheid israelense e financiam a limpeza étnica no território palestino.

No Brasil, no entanto, não há um comprometimento com o embargo de relações comerciais com Israel; pelo contrário, segundo os dados de Comércio Exterior – ComexStat, somente em 2022 o estado do Rio de Janeiro importou cerca de US$ 73,3 milhões em armas e munições, sendo o estado que mais compra esses itens no Brasil, ou seja, 33,3% de toda a importação brasileira de armas e munições é feita pelo Rio de Janeiro. Em comparação a 2021, ocorreu aumento de 47,6% na importação desses produtos bélicos. 

Conforme o monitoramento orçamentário do Poder Executivo realizado pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial), ocorreu a licitação de espingardas e fuzis comprados pelo Rio de Janeiro no valor de R$ 9 milhões, sem que se disponibilizasse nenhuma informação sobre a empresa que realizou a venda. Assistimos a um amplo processo de ausência de fiscalização, controle e transparência nas licitações públicas. As principais empresas que o governo do Rio de Janeiro aciona para as licitações de armas e munições são Israel Weapon, Benelli Armi e Companhia Brasileira de Cartuchos. São contratos de alto valor financeiro, em compras de arsenal de guerra, sem justificativas contundentes para a expansão do armamento das forças policiais. 

Estamos na contramão do mundo, que está discutindo a urgência do controle das forças policiais, a importância do desinvestimento das polícias e o direcionamento de gastos públicos para proteção social, criticando o aumento de recursos para tecnologias de vigilância e reconhecimento facial, por causa de seu caráter essencialmente racista. 

Vamos insistir em dois aspectos centrais: equipamento e humanização. Até quando segmentos de esquerda vão abordar armamentos menos letais como um dos caminhos para a garantia de direitos humanos? É suficiente editar palavras (como trocar “não letal” por “menos letal”) sem transformar ações? Acumulam-se críticas para o “tiro na cabecinha”, mas não vemos o mesmo empenho para criticar as mortes por asfixia. E as violações dos direitos de quem consegue sobreviver à violência “menos letal” do Estado?

Durante os protestos populares em 2019 no Chile, os armamentos produzidos pela empresa brasileira Condor – Tecnologias Não Letais foram utilizados para a repressão policial e resultaram na lesão ocular de 460 pessoas, segundo Instituto Nacional de Derechos Humanos (INDH). Os traumas oculares causados por uso de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo apenas ressaltam que não se trata de armamento com menor poder ofensivo, já que resulta em perda de visão e/ou deficiência física. A utilização de armamento menos letal não garante a diminuição da truculência policial, como propagado por uma esquerda punitivista e condescendente com as violações de Estado sob argumento de controle e ordem social.

Em um momento de discussões de emergência climática e racismo ambiental, não é aleatório ressaltar que o parque industrial da Condor – uma indústria química com 56 prédios espalhados numa área de 1 milhão de metros quadrados – está localizado em Nova Iguaçu (RJ) dentro da Reserva Biológica de Tinguá, onde a comunidade local sofre o impacto do uso de substâncias químicas e altamente inflamáveis utilizadas na produção dos armamentos.

Entretanto, acredita-se em armamento menos letal tanto quanto em polícia humanizada. Na lógica bélica que alimenta as políticas de segurança pública, não há espaço para a humanização. Esquerdas – no plural – ainda falam em criar (ou reformar) polícias humanizadas, como se essa instituição não tivesse como missão eliminar o inimigo de Estado que o próprio Estado inventa. Não é viável a humanização das polícias quando o processo de construção do alvo é sua desumanização.

No cerne desse debate reside o pressuposto do universal, do bem comum, de onde são forjadas as aguerridas agendas da esquerda em defesa da democracia – uma democracia que mulheres negras e indígenas que tiveram seus filhos e maridos assassinados pelo Estado afirmam nunca ter conhecido. Agendas forjadas no que, ironicamente, Frantz Fanon chamou de humanitarismo pálido. Uma democracia desracializada e sem diversidade. Raça, gênero e sexualidade também aparecem como “edição de texto”, como termos adicionados a programas políticos datados, em vez de marcarem diferenças que demandam a recusa do universal para produzir políticas públicas. É preciso insistir no óbvio: edições de texto não reduzem violência nem produzem justiça social. Quando pintam o Caveirão de branco, ele não deixa de matar. 

 

*Giselle Florentino é economista, mestranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e coordenadora executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial); e Juliana Farias é antropóloga e professora do Departamento de Sociologia da Uerj.

Fonte:Le Monde Diplomatique-Brasil