NÃO COMBATE A VIOLÊNCIA, MAS GARANTE VOTOS
Apesar da boa intenção e da boa vontade em defender grupos vulneráveis, as propostas trazidas pela esquerda não contribuíram para a criação de uma nova política de segurança pública, tendo apenas aprofundado e legitimado o desrespeito aos direitos e às garantias fundamentais do cidadão
A segurança pública é um dos temas que têm ocupado o noticiário e ganhado cada vez mais protagonismo no Brasil nos últimos anos. Alguns fatores contribuem para esse cenário; entre os principais, estão o aumento da violência causado pelo desemprego e pelas crises econômicas, e a utilização das redes sociais para jogar luz sobre questões relacionadas à violência. Essa massificação nos aplicativos fez com que tais discursos, já há muito tempo utilizados em programas sensacionalistas, tivessem ainda mais alcance. Somado a isso, há uma preocupação – legítima e cada vez maior – com a violência sofrida por grupos vulneráveis, como a população negra, homossexuais e mulheres ou fiéis de religiões de matrizes afro, uma vez que (e ainda bem), no Brasil, há um histórico de comprometimento da esquerda com as pautas de tais grupos.
A extrema direita ganhou muita força não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro ao protagonizar a discussão – ainda que com argumentos mentirosos, tornando-a contraproducente – sobre segurança pública. Ao defender posicionamentos punitivistas e de negação dos direitos humanos às pessoas acusadas de cometer crimes, a direita ganhou apoio de grande parte da população. No imaginário popular, o criminoso nunca está no círculo social próximo a nós, mas é o estranho, é aquele que não precisa ser reconhecido como pessoa.
Não é à toa que, nos discursos de um suposto combate ao crime, utilizam-se termos depreciativos, como “vermes”, “baratas”, “crápulas”, “animais” e “monstros”, ou seja, palavras que visam desumanizar aqueles que não vemos como cidadãos. E, se é assim, eles não devem ter os mesmos direitos que as demais pessoas.
A extrema direita, acostumada com o discurso de que o inimigo deve ser exterminado, utiliza a mesma lógica quando se fala da questão criminal. Ocorre que, quando se defende exterminar e não garantir direitos àqueles acusados de crime, também se fala de reduzir os espaços democráticos e de desrespeitar os direitos e as garantias fundamentais conquistados em duras e longas batalhas ao longo de nossa história. Reduzir os direitos daqueles que são investigados ou processados criminalmente significa negar a eles boa parte dos direitos que o cidadão tem, tratando-os como cidadãos de segunda classe.
Quando se analisam os discursos de políticos e comunicadores de extrema direita, verifica-se que as propostas para a diminuição da violência invariavelmente passam por redução das garantias individuais, aumento de penas, criminalização de mais condutas ou enrijecimento do cumprimento de pena, todas medidas que contribuem não apenas para a redução da cidadania, mas também para o superencarceramento. Olha-se para o processo e para a prisão como se eles fossem capazes de resolver os problemas da violência.
A população, assustada com os níveis de criminalidade e bombardeada por uma imprensa que por vezes se preocupa mais com audiência e com argumentos sensacionalistas do que com fatos e pesquisas sérias, em geral apoia as propostas de enrijecimento penal. Não se dá conta de que tais proposta não contribuirão para a redução da criminalidade e podem até mesmo favorecer seu incremento.
O problema é que os projetos de lei que se baseiam no aumento de penas e na redução de direitos para controlar a violência não passam de populismo penal, pois são incapazes de reduzi-la. Trata-se de mera simbologia, pois as mudanças legislativas ou decisões judiciais que restringem direitos são incapazes de combater a violência, apesar de garantirem votos. No entanto, passam a impressão de estarem procurando a resolução de um problema.

Soluções simplistas para problemas complexos
A violência é um fenômeno complexo, que não será resolvido pela mera mudança legislativa ou jurisprudencial, especialmente porque a lei e as decisões judiciais não atacam as causas da violência. A criminalidade reflete, na verdade, as consequências de nossos problemas sociais.
Ao analisarmos os delitos, vemos que diferentes crimes têm diferentes causas. A título de exemplo, os crimes patrimoniais, como roubo e furto, estão ligados a problemas relacionados a pobreza, desemprego e desigualdade social. Crimes sexuais têm origem em uma cultura machista. Crimes ligados à corrupção de agentes públicos têm sua fonte ligada a baixos salários, pouca estrutura para realização dos trabalhos e falta de controle dos atos funcionais. Vê-se que as causas dos crimes diferem muito, então não é possível, com um único ato, como o aumento da pena, reduzir a prática de seus diferentes tipos.
Tendo os diversos tipos de delito suas motivações particulares, é evidente que o modo de preveni-los não será o mesmo. A distribuição de renda e a redução do desemprego podem ser efetivos para a redução dos crimes patrimoniais, mas muito provavelmente não surtirão efeito em relação aos sexuais ou sobre questões relacionadas à corrupção. Da mesma forma, reduzir o machismo e criar uma cultura de valorização da mulher pode ter efeitos muito significativos na prevenção dos crimes sexuais, mas não será capaz de reduzir os roubos.
Prender pessoas flagradas cometendo crimes também não contribuirá para a redução da violência. Entre quem estuda o universo criminal, já se conhece, há décadas, o fenômeno da cifra oculta, que consiste nos delitos que não chegam ao conhecimento das autoridades públicas. São os roubos e furtos que as vítimas não registram em boletins de ocorrência, os estupros não denunciados ou os casos de corrupção que não são descobertos e, assim, nem sequer investigados. A maior parte dos crimes praticados não chega ao conhecimento das autoridades. Por exemplo, quem foi roubado ou furtado dificilmente leva isso ao conhecimento da polícia, pois acredita que denunciar tal crime não trará nenhum benefício, já que não será investigado. Outro exemplo fora das estatísticas é a violência doméstica. Quantas mulheres agredidas por seu marido ou parceiro levam os casos para a polícia?
Apenas uma ínfima parcela dos crimes praticados chega ao conhecimento das autoridades. Isso significa que prender as pessoas flagradas cometendo crimes não trará resultados efetivos para a redução da criminalidade. Por outro lado, não significa que não se deva prender os acusados de cometer crimes, desde que haja embasamento. No entanto, precisamos ter clareza de que prender mais não trará os sonhados resultados no que se refere à redução da violência.
Fica evidente que não é a prisão que vai contribuir para a redução da criminalidade. Por isso, é necessário pensar em estratégias que tratem as causas do problema. Devemos nos perguntar quais são os fatos que levam à conduta indesejada para pensar em como modificar a sociedade, prevenindo efetivamente o crime.
Dito mais explicitamente, ao falarmos de prevenção, precisamos ter clareza de que é preciso olhar para o tipo de crime que se deseja atacar antes de procurar as soluções que serão mais eficazes. É necessário ter em mente que é preciso olhar para as bases do problema, não bastando atingir apenas suas consequências.
Em um país como o Brasil, onde as diferenças socioeconômicas são enormes e a violência urbana acaba sendo fortemente influenciada por elas, parte da esquerda, por muito tempo, defendeu propostas como melhorias da educação e melhor distribuição de renda como forma de redução de diversos problemas sociais, inclusive da violência.
Ainda que a educação e a distribuição de renda não sejam uma estratégia viável para a diminuição de todos os tipos de crime, é certo que poderiam auxiliar na redução dos crimes contra o patrimônio, em especial roubos e furtos, que estão entre os delitos que mais incomodam e amedrontam a população brasileira. Reduzindo-se as desigualdades econômicas e garantindo-se educação para toda a população, seria possível, ao menos, diminuir roubos e furtos, o que atenuaria significativamente a violência urbana.
É evidente que apenas as medidas citadas não possibilitariam a redução da violência e da criminalidade em relação a todos os tipos de crime. Contudo, já é uma proposta muito melhor do que a sugerida pela direita, que sempre insistiu unicamente em criminalizar mais condutas, aumentar as penas, impor a pena de morte, reduzir a maioridade penal e retirar direitos e garantias fundamentais.
A esquerda partidária aproximou-se de acadêmicos para formular propostas de políticas criminais capazes de reduzir a violência e a criminalidade. Tal empreendimento, no entanto, não foi duradouro, uma vez que qualquer política pública requer dinheiro e tempo para ser colocada em prática e produzir efeitos. O problema é que o eleitor quer respostas rápidas. E, quando se fala em combate ao crime, respostas rápidas são ações que não reduzirão a violência, podendo, em alguns casos, aumentá-la.
O populismo penal de esquerda
Já na década de 1990, Maria Lúcia Karam observou que a esquerda era seduzida pelo mesmo discurso punitivista da direita quando se falava em crimes econômicos e de corrupção, defendendo que se retirassem garantias e direitos de políticos e empresários. Estava claro que, em pouco tempo, a esquerda também seria adepta do populismo penal, apenas elegendo inimigos diferentes daqueles da direita. Se a direita via como inimigo o jovem negro periférico, que roubava nos sinais e traficava drogas, o inimigo da esquerda era o político tradicional.
Apesar da crítica trazida por Maria Lúcia Karam, a esquerda, em especial a partidária, adotou o mesmo discurso punitivista da direita, como se o sistema penal fosse capaz, por si só, de defender as minorias e evitar a corrupção. Nessa toada, o movimento negro buscou penas maiores para delitos de racismo; as mulheres, penas maiores para os crimes relacionados à violência doméstica e a delitos sexuais; e o movimento LGBTQIA+ lutou pela criminalização da homofobia. Todos esses grupos também procuraram reduzir as garantias processuais do acusado, em especial dando grande valor à palavra da vítima, pois em muitos casos era a única prova possível para condenar o acusado.
Apesar da boa intenção e da boa vontade em defender grupos vulneráveis, as propostas trazidas pela esquerda e pelos movimentos identitários não contribuíram para a criação de uma nova política de segurança pública, tendo apenas aprofundado e legitimado o desrespeito aos direitos e às garantias fundamentais do cidadão. Não notaram que as propostas para a segurança pública envolvem os mesmos erros da direita, consistindo novamente em populismo penal. Tais leis e medidas judiciais adotadas têm grande carga simbólica, mas pouca ou nenhuma efetividade no que se refere à garantia de direitos da vítima e proteção das minorias.
Antes de proteger as minorias, o populismo penal, que foi por elas abraçado, piora a situação dos grupos, uma vez que, editada a lei penal ou processual penal para proteção da minoria ou modificada a jurisprudência, os deputados, senadores e ministros de Estado entendem que o necessário já foi realizado. Assim, deixam de adotar políticas públicas capazes de reduzir a violência ou atacar os problemas sociais. Não por acaso, após a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher, em especial o número de homicídios de mulheres e de feminicídios, aumentou durante muito tempo, pois se editou a lei e não foram feitas políticas públicas capazes de proteger as vítimas.
Apesar de o sistema penal se mostrar ineficaz para reduzir a violência contra grupos vulneráveis, grande parte dos políticos de esquerda defende o aumento das penas e a redução das garantias para proteger grupos vulneráveis. Isso faz com que não seja construída uma política criminal alternativa à da direita.
A inexistência de uma política criminal da esquerda e o fortalecimento das facções
A falta de uma proposta de política criminal da esquerda partidária pode ser verificada na Bahia, que é governada desde 2006 pelo PT. O partido adotou no estado a mesma política criminal voltada para a prisão e o extermínio da população negra e periférica de estados governados pela extrema direita, como Rio de Janeiro e São Paulo.
Essa política não favorece a redução da violência, como se verifica pelos índices de criminalidade. Na verdade, prender, nas condições carcerárias atuais, é uma forma de incrementar a violência, pois os presídios há décadas são incubadoras de facções criminosas. Ao prender mais, o Estado brasileiro facilita o recrutamento de soldados para o PCC, o Comando Vermelho, a Família do Norte e tantas outras facções.
Ao chegar ao presídio, o jovem é presa fácil para esses grupos, que o recrutarão e lhe darão uma perspectiva melhor do que a que o Estado deu. Na facção, esse jovem poderá ter sucesso no mundo do crime, ter dinheiro e poder, o que para esses cidadãos é algo praticamente inalcançável pelos meios legais, principalmente depois de serem presos.
Ao manter o cárcere superlotado, o Estado torna-se o maior aliado das facções, pois garante o recrutamento dos novos membros. Isso significa que, ao adotar propostas populistas como elevar as penas, reduzir benefícios prisionais e relativizar garantias processuais, o Brasil contribui para o incremento da violência, e não para sua redução. A esquerda deve repensar seu papel, inclusive tendo claro que foi durante os governos Lula e Dilma que tivemos o maior crescimento da população carcerária.
*André Lozano é advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade São Judas Tadeu. É também autor do livro Populismo penal: comunicação, manipulação política e democracia, D’Plácido, 2020.
Fonte:Le Monde Diplomatique-Brasil
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