Não é possível um programa de enfrentamento da extrema direita sem mudanças profundas na segurança pública e na relação com os militares

Vivemos uma espécie de governo militar no Brasil entre 2019 e 2022. Não do tipo ditatorial, mas a expressão de um projeto eleitoral que vinha se consolidando havia anos no país e que ganhou densidade com o fortalecimento da extrema direita. Parlamentares como o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro foram eleitos ao longo de toda a Nova República (e, inclusive, se organizavam na denominada Bancada da Bala). No entanto, a rearticulação de um projeto de poder autoritário e de extrema direita, organizado pelos militares, com significativo enraizamento social e institucional e, sobretudo, com capacidade de alterar pactos hegemônicos na sociedade, não era vista desde o fim da ditadura militar empresarial.

O contexto internacional foi fundamental para essa reorganização. A assunção da extrema direita no mundo, desde a crise econômica de 2008, foi um divisor de águas. Essa crise econômica aprofundou uma ferida aberta no capitalismo mundial, que tem como centro o colapso da democracia liberal. A crise democrática decorre da tensão entre os efeitos sociais da precarização do trabalho e da vida (experimentada pelo avanço do neoliberalismo) e a pressão de setores econômicos para o aumento e/ou manutenção de taxas de lucros. 

A ascensão da extrema direita militarizada brasileira faz parte dessa conjuntura internacional. No entanto, tem suas especificidades, pois a forma autoritária brasileira, diferentemente de outros lugares, inclui o protagonismo de militares e uma tendência maior para a aplicação da violência institucional. Isso evidencia que o enfrentamento da extrema direita no Brasil está atrelado a mudanças estruturais na segurança pública e na relação com os militares. 

 

A base social autoritária: os militares no centro da manutenção do status quo na construção da República brasileira 

O Brasil, situado na periferia do capitalismo, desenvolveu esse sistema de forma tardia, em especial a partir de 1930. A base colonial patriarcal, escravista e patrimonialista é fundamental para entender o autoritarismo estrutural do país. A ideia de uma “revolução burguesa” que superaria essas características e promoveria desenvolvimento econômico e social norteou diversos projetos políticos, mesmo que com diferentes abordagens em relação à distribuição de riquezas.

Ocorre que, como observou Florestan Fernandes e tantos outros teóricos, o que aconteceu no centro do capitalismo não estava destinado a se repetir na periferia do mundo. As construções de periferias são condições para a existência de um centro rico.

Nesse sentido, Florestan aponta que o desenvolvimento econômico nos moldes de uma economia capitalista periférica não tem como consequência o desenvolvimento de uma democracia liberal em que todos participem. O patamar de desigualdade social existente e a falta de um projeto real de inclusão fazem com que a democracia liberal só seja experimentada por uma parcela das classes sociais.

Em razão dessa formação, nossa base social é estruturalmente autoritária, tendo de conviver com significativo patamar de violência para a manutenção do status quo. É nesse sentido que se desenvolvem aparatos fascistizantes no Estado, gestados para a organização do controle social, como as polícias militares.

Toda vez que houve algum tipo de ameaça de desestabilização dessa forma de organização social, os militares entraram em cena para, com maior exercício da violência, colocar a roda para girar novamente nesse mesmo eixo. 

Ressalta-se que a relevância e o protagonismo político das Forças Armadas se deram, sobretudo, com a proclamação da República (uma espécie também de golpe militar), ou seja, quando da necessidade de aplicação do modo de produção capitalista. 

Em especial até 1964, as Forças Armadas se envolveram com eventos políticos e com as ideologias que permeavam a sociedade (comunismo, integralismo, liberalismo), assim como com a construção de uma identidade nacional. Além de presidentes militares eleitos, a Revolução de 1930 e o golpe do Estado Novo foram gerenciadas pelos militares. 

Em 1937, aliás, quase se organizou um golpe militar, mas a falta de aliança na cúpula das forças impediu essa movimentação. Naquele momento foi formulada a principal teoria intervencionista das Forças Armadas, um documento de Góes Monteiro que defendia que as disputas das oligarquias de diferentes setores econômicos nos estados impediam a unidade nacional necessária para a formação da economia capitalista e que o único setor capaz de exercer essa unidade, que pensasse mais na nação do que em interesses particulares, seriam as Forças Armadas.

A partir de então, as Forças Armadas operaram diversas tentativas de golpe com esse intuito: as de 1946, 1954, 1956 e 1961, até o golpe militar de 1964. Foi um longo percurso até a efetivação do controle militar. 

Esse processo precisou de duas condições importantes. A primeira foi a profissionalização do Exército e de seu monopólio das forças de segurança do país. Durante muito tempo, as forças públicas estaduais rivalizaram com o poderio do Exército. A submissão das polícias estaduais às Forças Armadas se consolidou durante o Estado Novo, e sua militarização, em especial, durante a ditadura militar. A segunda foi o controle interno dessas forças, pois foram disputadas ao longo do século XX. Setores revolucionários ligados a partidos de esquerda e comunistas tinham sua fração nas Forças Armadas (como foi o caso de Luís Carlos Prestes e Carlos Lamarca), assim como setores do populismo de esquerda, conservadores e liberais. Um longo processo de alteração no ingresso das Forças, de isolamento destas da sociedade, de expurgos e até execuções (durante a ditadura) foi necessário para que o controle interno fosse absoluto e não houvesse mais disputa interna relevante, viabilizando o projeto político das Forças ligadas às estruturas mais conservadores da sociedade brasileira, dispostas ao recrudescimento para garantir a manutenção do status quo.

O “8 de janeiro”, marcado como o ato golpista organizado e operado por eleitores e simpatizantes do bolsonarismo, prova a ascensão da extrema direita no Brasil (Foto:Wikimedia Commons)

Considerações finais 

Desde o golpe de 2016 tivemos um aumento da austeridade fiscal e um aprofundamento da agenda neoliberal radical: teto de gastos, reforma trabalhista, reforma da Previdência, aumento da concentração de renda e da taxa de lucro, negacionismo ambiental e retirada de terras indígenas. Enfim, a disputa sobre a agenda distributiva foi se efetivando com a escalada autoritária.

O que podemos verificar na história brasileira, portanto, é que a manutenção da desigualdade e das políticas de austeridade pode ser aplicada em governos de direita clássicos e com respeito à dinâmica da democracia liberal periférica (ou autocracia burguesa). Ou seja, em alguns períodos, os instrumentos de controle social militarizados vão ser suficientes para a manutenção do status quo. No entanto, há períodos em que, por uma conjunção de fatores, a aplicação dessas políticas de concentração de renda só consegue se concretizar pela elevação do autoritarismo, com protagonismo direto dos setores armados. Assim, há uma estrutura latente de autoritarismo no Brasil, calcada nos militares, que atravessa nossa história, avança e recua, mas nunca some.

Nesse sentido, estamos diante de um desafio histórico em que heranças autoritárias, sociais, culturais, econômicas e políticas se articulam e germinam no conjunto da sociedade. Precisamos de um enfrentamento de seus elementos centrais. A mudança na relação com militares e a segurança pública é condição indispensável para pôr um freio nessa rota autoritária. Está evidente que a extrema direita continua forte no Brasil e no mundo e, em nosso caso, que teremos de abrir as feridas do país para sará-las. É custoso, mas, na história, chega um momento em que não há mais atalho. Ou enfrentamos nossos monstros, ou eles nos devorarão. 

 

*Julia Almeida é autora de A militarização da política no Brasil contemporâneo (Alameda, 2023), doutoranda em Direito pela USP e professora e pesquisadora do DHCTEM-USP.

 

Referências bibliográficas

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Contracorrente, 2020

FERNANDES, Florestan. Poder e contrapoder na América Latina. Expressão Popular, 2015.

SILVA, Julia Almeida V. da. A militarização da política no Brasil contemporâneo. Alameda, 2023.

Fonte:Le Monde Diplomatique Brasil