Em um mundo em que muitos Estados – Ucrânia, Rússia, Palestina, Israel – percebem os conflitos que os envolvem como existenciais, como evitar uma escalada aos extremos, especialmente quando as grandes potências se desviam de suas próprias regras?
A “pax americana” está terminando e deixando o mundo em grande desordem. Durante três décadas, os Estados Unidos, seguidos por seus aliados, acreditaram poder remodelar o mundo à sua imagem por meio da influência, acreditando serem exemplos, por meio da regulação, apresentando-se como fontes de direito, e, cada vez mais, por meio da força, sabendo serem os mais poderosos. Com isso, perderam de vista suas próprias promessas e suscitaram uma onda de insatisfação mundial cujo preço todos nós pagamos.1
Não é hora de olhar para trás, mas de tirar lições e olhar para a frente, para o mundo que está por vir. Este é prisioneiro de uma mecânica infernal, uma engrenagem de guerra global feita de três processos paralelos.
Em primeiro lugar, a fragmentação do mundo. Ela resulta principalmente de uma desregulação da força sem precedentes. O consenso de 1945, que fundou uma ordem internacional voltada para a resolução pacífica das crises, manteve o interesse na desescalada durante a Guerra Fria e depois, como “policial do mundo” encarnado na hiperpotência norte-americana, se desintegrou. De um lado, porque as potências ocidentais, garantidoras dessa ordem, se libertaram de suas próprias regras, agindo fora do quadro legal internacional, como no Kosovo em 1999 e no Iraque em 2003;2 sem salvaguardas, como na Líbia em 2011; e sem perspectiva política, como no Sahel desde 2013. De outro lado, o enfraquecimento do direito é obra de potências como a Rússia e a China, insatisfeitas com a ordem de 1945, que lhes deixava pouco espaço e justifica um uso mais descomplexado da ameaça e da força.
A fragmentação também nasce de uma aceleração das crises. Esta tornou o mundo mais explosivo do que nunca logo após a trilha de pólvora deixada pelas guerras civis originadas das Primaveras Árabes de 2011 na Líbia, na Síria e no Iêmen. Todos os conflitos congelados dos anos 1990 parecem aquecidos ao máximo: guerra na Ucrânia desde 2014 e ainda mais em 2022; dupla guerra de Nagorno-Karabakh entre Azerbaijão e Armênia, em 2020 e 2023; e nova Guerra de Gaza em 2023. Em todos os lugares, atores oportunistas, grupos terroristas, homens fortes e movimentos etnonacionalistas avançam suas peças no tabuleiro do desajuste mundial.
Por fim, essa fragmentação se alimenta de uma polarização do sistema internacional, agravada pela multiplicação de sanções. A rivalidade entre China e Estados Unidos obriga pouco a pouco cada país a se alinhar e escolher seu lado. Desde a Guerra Fria, sabemos quanto a bipolarização é carregada de corridas armamentistas e riscos de escaladas e conflitos por procuração nas margens disputadas. No entanto, agora isso ocorre em uma proporção sem precedentes, e a relação de forças não é, a longo prazo, absolutamente favorável a Washington, nem demograficamente, apesar do envelhecimento acelerado da China, nem economicamente, apesar da crise do crescimento chinês, nem talvez politicamente, numa época em que os Estados Unidos se tornam menos confiáveis, mais exigentes e, às vezes, até imperiosos.3 Se parecem crescer insolentemente hoje, é porque a proteção não avança sem um esforço de vassalização ou até mesmo de predação de seus aliados. A maior vantagem comparativa dos Estados Unidos permanecerá por muito tempo sendo um Exército superpoderoso, instalado em todo o globo, o único dotado do arsenal completo de nossa época e experimentado por um século de conflitos, enquanto os militares chineses não têm nenhuma vivência direta. O peso principal das guerras recai nos pontos de apoio asiáticos – Japão, Coreia do Sul e Taiwan – e nos aliados europeus, indiretamente, já que a polarização facilita uma aproximação e até uma complementaridade estratégica entre a China e a Rússia, que anteriormente não era evidente.
A lógica do tudo ou nada
O segundo processo paralelo produz uma lógica de confronto total.4 As situações na Ucrânia e em Gaza indicam novos níveis de intensidade da guerra. Paralelos foram mencionados, aqui com a guerra de trincheiras, ali com os bombardeios de Dresden. No entanto, mais profundamente, eles traduzem um novo tipo de conflito no qual domina a lógica do tudo ou nada, em que qualquer compromisso parece uma concessão. É o ar de Munique, cantado por toda parte.5
Não são apenas conflitos territoriais, mas também existenciais para cada beligerante. Os ucranianos, diante da agressão russa, enfrentam uma vontade explícita de erradicação de sua nação, de sua cultura e de sua língua. Entretanto, também prevalece na Rússia, na cúpula, a ideia de uma guerra existencial por seus direitos como nação, diante da pressão de um Ocidente ameaçador às suas portas. Em Israel, o 7 de Outubro despertou o sentimento de uma vulnerabilidade existencial, o enfraquecimento da promessa fundamental do Estado de Israel de oferecer um lugar seguro onde os judeus pudessem viver em segurança. A amplitude e o horror dos ataques no território israelense e a falha da inteligência e do Exército geraram uma dúvida e um medo indeléveis. Em Gaza, a intensidade dos bombardeios incessantes, o nível de destruição e a sensação de haver um alvo em todas as infraestruturas culturais, de saúde, educativas e de identidade coletiva reforçam o sentimento de uma contestação total.
Essas guerras são também totais porque são memoriais, levando em conta o passado em suas mochilas. Todos os fantasmas da história parecem convocados. Na Rússia, mobiliza-se a memória da “grande guerra patriótica” (1941-1945), retratando a Ucrânia como um país a ser desnazificado; na Ucrânia, relembra-se a memória das fomes organizadas do Holodomor (1932-1933), chamando a desestalinizar a Rússia. Em Israel, o 7 de Outubro evocou o terrível eco do Holocausto, e alguns consideram a conquista de Gaza e a destruição do Hamas como uma “desnazificação” que legitima o bombardeio, a ocupação militar e, no futuro, a reeducação dos habitantes desse território; do lado palestino, é a memória da Nakba, a catástrofe de 1948 que está em todas as mentes, com o medo de que a estratégia de Israel seja, em última instância, expulsar os palestinos para o Egito ou para outro lugar.
Não nos enganemos: essa espiral identitária da essencialização do Outro em ação nas guerras está presente também entre nós. Todo mundo tem medo. A “lógica do inimigo”, analisada por Carl Schmitt, cristaliza os medos na existência de um inimigo determinado a nos destruir. Reduzindo o outro a uma caricatura, nós o transformamos em um demônio com intenções tão secretas quanto infernais. E confirmamos tragicamente esse adversário em nossa própria convicção de que devemos aniquilá-lo. Internamente, é a mecânica da guerra civil, cujos germes vemos aqui ou ali – em especial no caráter histérico da eleição presidencial norte-americana. Externamente, trata-se da lógica da guerra total.
O terceiro processo paralelo, a globalização da guerra, tende a um ponto de máximo: a guerra global, uma guerra sem limites amplificada pela globalização.
A guerra global não tem limites em termos de contágio e transmissão. Antigamente, a barreira do espaço, a lentidão das comunicações e a dificuldade dos intercâmbios criavam uma contenção natural dos conflitos. Hoje em dia, pelo contrário, ela afetaria uma humanidade totalmente interdependente e interconectada, na qual os choques econômicos, as paixões políticas e as mobilizações para a guerra são quase instantâneos. Nosso mundo se torna, assim, mais inflamável do que qualquer sistema internacional do passado, à mercê do menor deslize, da menor manipulação.
A guerra global se infiltra em todos os cantos – nos mares, nas terras e nos ares, claro –, mas também se desenha no espaço e no ciberespaço, com, em ambos os casos, consequências sem precedentes nas vidas cotidianas da “retaguarda”: distúrbios no sistema de saúde, guerra híbrida de informação e desestabilização política, transformação dos conflitos internacionais em batalhas civis e identitárias.
A guerra global é portadora de uma destruição potencialmente ilimitada. A possibilidade não desprezível de um conflito nuclear, a perturbação das rotas comerciais – com seus riscos de escassez e inflação – e a ameaça de uma guerra espacial devem ser levadas em consideração por aqueles que, levianamente, pensam que a guerra é o caminho mais curto para a paz. Essa guerra só levaria à paz dos cemitérios.
A guerra global é uma guerra suicida contra o próprio planeta, que nos desvia de nossos objetivos de descarbonização, dissipando energias tão difíceis de mobilizar; no entanto, de forma ainda mais grave, leva-nos a uma abordagem competitiva, na qual a descarbonização se torna uma variável no confronto entre blocos, uma perda para a economia de guerra. E quem aceitará apertar o cinto se isso constituir um risco de reduzir os preços da energia para um rival? Esse cálculo viciado nos conduz a uma aceleração do aquecimento global.
Neste mundo inflamável, hoje em dia a França está perdendo suas raízes em uma Europa que está se desintegrando. É o risco de uma França sem raízes em uma Europa fora de jogo.
Nos últimos sessenta anos, a Quinta República (1958-…) soube se reenraizar no mundo após o desastre de 1940, as guerras coloniais perdidas e a Crise de Suez,6 que a deixavam, por assim dizer, para escanteio, sujeita às críticas dos dois blocos. O general De Gaulle [presidente entre 1944 e 1946 e entre 1959 e 1969] conseguiu imprimir uma marca duradoura que fundamentava o prestígio da França em quatro pilares: o papel de guardiã e pioneira da ordem multilateral, justificando por seu dinamismo seu inesperado pertencimento ao grupo de vencedores da ordem de 1945; o papel de incentivo e de potência de equilíbrio no confronto entre blocos, nem alinhada nem indiferente; o papel de potência independente, dotada de armas nucleares, falando de igual para igual com todos os Estados do mundo; e, finalmente, o papel de animador prudente de uma Europa política solidária e em constante aproximação, em nome da superação das disputas nacionais.
A França de hoje está sem raízes. Ela transmite a sensação de uma estranha impotência.7 Desde 1989, o país foi desequilibrado pela desaparição de um dos blocos, pelo poder recuperado da Alemanha e pela perda de influência na África. Depois, para não encarar esses problemas, a França se lançou de cabeça em uma ofensiva de intervenções militares, vicária do poder norte-americano e de crescentes tensões com a Alemanha.
Ela conduziu uma política errática e volátil, muitas vezes oscilando entre os diferentes lados do muro. Em relação aos Estados Unidos, ela hesita entre um bromance com Donald Trump e a desconfiança em relação a uma Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em estágio de “morte cerebral”. Em relação à Alemanha, ela passa de um discurso de 2017 convidando a chanceler Angela Merkel para um áspero confronto conjunto em todas as questões técnicas à tentação de formar com os países do Leste Europeu uma aliança de retaguarda contra a hegemonia alemã na Europa. Na crise ucraniana, um dia a França sustenta que não se deve “humilhar a Rússia” e, no outro, oferece à Ucrânia seu apoio “sem limites”, inclusive com “tropas no solo”. Na guerra em Gaza, um dia propõe a Israel uma coalizão internacional contra o Hamas; no outro, pede o cessar-fogo. Todo mundo concordou pelo menos uma vez com essa nova política externa francesa, mas ninguém a longo prazo.
Sua política externa também está desequilibrada. Desde 2007, ela saiu da órbita que a Quinta República lhe imprimia, para desviar para uma trajetória cada vez mais excêntrica, um neoconservadorismo desinibido, impulsionado por uma paisagem midiática monocromática e encampando em todo debate uma escalada. A linha dominante é a do ocidentalismo, do moralismo, do militarismo e de um “democratismo” pouco preocupado com a diversidade do mundo. Como resultado, acumula fracassos, como suas difíceis relações no Magreb, sua impotência no Líbano, o tapa de seus aliados anglo-saxões no caso dos submarinos australianos em setembro de 2021 e sua humilhante expulsão do Sahel. Uma onda de ressentimento antifrancês abala a África e atravessa o mundo, como um novo “momento de 1956” de questionamento de nossas escolhas diplomáticas.
A política externa francesa está militarizada, especialmente no que diz respeito à gestão de crises. “Quando você tem um martelo, todos os problemas se parecem com pregos”, costumava dizer o presidente norte-americano Barack Obama. O que é verdade para o Exército norte-americano também é, em sua medida, para o francês. Por outro lado, a diplomacia é um canivete suíço, uma série de ferramentas imperfeitas destinadas a lidar da melhor forma possível com todas as eventualidades e a improvisar soluções que sejam sempre as menos ruins possíveis. Os grandes diplomatas são principalmente talentosos improvisadores, armados com uma cultura histórica, um espírito de serviço público e um gosto pelo outro a toda prova.
Nessa espiral trágica, esses desvios são ao mesmo tempo as causas e os efeitos da fraqueza francesa, levando o país cada vez mais perto do risco de declínio. Fora de nossas fronteiras, quem ainda reconhece a França quando ela se torna uma caricatura da falta de bússola estratégica?
Ao mesmo tempo, a Europa está ameaçada de colapso. Como um organismo geopolítico frágil, ela sofre com as sobrepressões e depressões de seu entorno imediato. Sobrepressão extrema das grandes áreas de poder que a cercam em primeiro lugar: Rússia, China e Estados Unidos.
A guerra na Ucrânia lembrou o Velho Continente de sua vulnerabilidade. A soberania territorial da Europa está em jogo; ela agora sabe que não é mais capaz de garantir a própria defesa, dependendo de uma ajuda norte-americana cada vez mais incerta a cada ano. Ela tem dificuldade em relançar sua produção de defesa para reabastecer seus estoques e continuar apoiando a Ucrânia. Os projetos industriais comuns frequentemente ficam encalhados ou são relançados com dificuldade, como os projetos franco-alemães de caça (Sistema de Combate Aéreo do Futuro, Scaf) e de tanque do futuro (Main Ground Combat System, MGCS).
A soberania industrial europeia não está em melhor forma. A Europa parece diminuída em relação à economia norte-americana e ameaçada pelo avanço do protecionismo e da planificação industrial que os Estados Unidos buscam pragmaticamente, de Trump a Biden. Os PIBs europeu e norte-americano eram semelhantes em 2008. O primeiro agora representa pouco mais da metade do segundo. A crise financeira dos subprimes, longe de enfraquecer a economia de onde partiu, a fortaleceu e a renovou, deixando a União Europeia sufocada pelas políticas de austeridade. Os US$ 369 bilhões em subsídios do Inflation Reduction Act (IRA, 2021) criaram vastas capacidades produtivas estratégicas nos setores de baterias e semicondutores, em detrimento da Europa. Ao mesmo tempo, a Europa parece ser muito dependente comercialmente da China – a França pelo mercado de luxo e a Alemanha pela indústria automobilística. A indústria europeia está em perigo na nova cadeia-chave das baterias elétricas e dos veículos elétricos. Dessa dupla pressão resulta uma crise histórica no modelo industrial europeu e o risco de uma corrida ao protecionismo e aos subsídios. Nessa corrida, a Europa estaria amarrada por uma política de concorrência muito rigorosa, pela fragmentação dos subsídios e por uma política comercial constrangida pelos interesses divergentes dos 27 países-membros do bloco.
Em termos de soberania tecnológica, a posição da Europa não é muito melhor. As “sete magníficas” da tecnologia norte-americana (Alphabet, Amazon, Apple, Microsoft, Meta, Nvidia e Tesla) dominam o mundo. Entre as cinquenta maiores empresas globais de tecnologia, apenas quatro são europeias. Setenta e dois por cento do mercado de nuvem (cloud) europeu é dominado por três empresas norte-americanas, com riscos reais de extraterritorialidade dos dados dos europeus e perda de soberania digital. No momento em que uma nova onda de inovação está surgindo, com a inteligência artificial e a computação quântica, a Europa deve se posicionar para proteger suas start-ups talentosas, direcionando as encomendas públicas para as empresas europeias e estruturando o mercado único digital.
Os desafios às portas da Europa multiplicam-se com a depressão de dois espaços vizinhos, em que o vazio de poder leva à instabilidade e ao caos: o Oriente Médio e a África Subsaariana. A Europa vê seu entorno como uma fonte de ameaças e problemas, e não de parcerias: guerras no leste, falhas nas políticas de assistência social e medo obsessivo das ondas migratórias no sul.
Assim, torna-se cada dia mais difícil de garantir a unidade europeia, enquanto a democracia comunitária parece suspensa entre o salto federal e a expansão intergovernamental. O alargamento e a regulação exagerada por parte de Bruxelas às vezes dão uma sensação de avanço diante de escolhas impossíveis. Isso aguça as divisões internas e favorece as pressões internas, como as que o presidente húngaro, Viktor Orbán, se esforça para exercer. O presidente Emmanuel Macron acertou ao pedir a afirmação de uma autonomia estratégica europeia e obteve resultados reais, com a mutualização de 750 bilhões de euros da dívida europeia durante a Covid. No entanto, ainda é necessário que a Europa sobreviva.

A França deve sair do G7
É hora de a França despertar diplomaticamente, fiel à sua vocação e à sua mensagem. Ela deve se reorganizar para a batalha, apoiando-se em um corpo diplomático e em um aparato militar de qualidade, atualmente em dificuldade. Para escapar do realismo, triste e impotente, bem como do idealismo, ingênuo e ainda mais impotente, é preciso escolher o caminho de um ideal-realismo consistente, assumindo a ardente necessidade de poder – da França, da Europa, da comunidade internacional. Conduzir uma diplomacia eficaz é, antes de tudo, saber escolher prioridades capazes de restaurar a credibilidade francesa.
A primeira prioridade é uma diplomacia de compromisso para servir à paz. Trabalho de longo prazo e alta intensidade, pois se trata, antes de tudo, de recriar o vínculo com o sul. Perdemos o contato nas últimas duas décadas, a ponto de não mais ouvir e entender o que nos é dito.
É hora de a França voltar a ser o que sempre foi, um país-mundo, ponte e encruzilhada do sul e do norte, do leste e do oeste, capaz de falar com todos.
Novos fóruns nos quais a mensagem da França pode se configurar no interesse geral são necessários. O G7, criado pelo presidente Giscard d’Estaing (1974-1981), tem apenas a legitimidade caricatural de um governo censitário global, com um décimo da população mundial controlando metade da riqueza mundial; um clube do Ocidente global. A França deveria enviar um sinal forte retirando-se desse fórum sem futuro. O G20, ressuscitado pelo presidente Nicolas Sarkozy após a crise de 2008, que inicialmente simbolizava a tecnocracia financeira mundial, deve retomar uma forma de responsabilidade perante a Assembleia das Nações Unidas, guardiã do direito internacional. Diante da contestação e do bloqueio da ONU, a França deve manter o projeto de reforma do Conselho de Segurança para aumentar sua representatividade, com novos membros permanentes, e sua eficácia, com uma reforma pontual do direito de veto. Entre os fóruns generalistas, os Brics+ merecem nossa atenção. Organização em plena transformação, visa representar o Sul Global com suas recentes expansões. Já reúne quase metade da população mundial, em um conjunto heterogêneo, mas unido por um mesmo ressentimento em relação ao Ocidente. Devemos entrar em uma lógica majoritária em nível global para encontrar novas soluções e um impulso reformador comum. A França poderia iniciar um caminho para um “Brics+ ampliado”, em que países voluntários se agregariam às discussões dos membros desse agrupamento para formular uma agenda global apoiada por uma ampla maioria mundial. Devemos demonstrar a eficácia do método coletivo, tema por tema, sobre o clima, apesar do esgotamento progressivo do ímpeto dos Acordos de Paris, de COP em COP, mas também sobre a questão dos Estados falidos, que se traduz concretamente em dois flagelos da globalização: por um lado, o terrorismo internacional, que corrompe o Sahel, o Oriente Médio e a Ásia Central e afeta todas as potências; por outro lado, o crime organizado, que avança em todos os continentes.
Devemos também defender e promover uma visão multipolar. O confronto de blocos não pode resumir toda a diversidade do mundo. Nossa longa história, incluindo nossos fracassos, nos ensinou que o equilíbrio de potências era o pior dos sistemas internacionais, exceto todos os outros, como Winston Churchill acertadamente afirmou sobre a democracia. Devemos afirmar claramente que o retorno da China ao cenário mundial é legítimo e necessário, após dois séculos de obliteração, mas também que o retorno de uma Índia forte e portadora de suas próprias mensagens é esperado e desejado. Nossa diplomacia deve refletir essa busca por grandes parceiros.
A segunda prioridade é uma política de independência baseada na ideia de preparação e livre escolha, colocando a França em posição de, se necessário, conduzir uma guerra.
Devemos em primeiro lugar refletir sobre o tamanho do Exército. A Lei de Programação Militar aumenta os créditos daqui até 2030 em mais de 400 bilhões de euros. Reconhecendo o subinvestimento dos últimos anos, essa lei, entretanto, persevera em manter um Exército generalista, necessariamente reduzido, um exército-bonsai a serviço das enormes ambições de uma grande potência mundial. Devemos aceitar reduzir nossas ambições à defesa continental e territorial. Isso segue a lógica de profissionalização dos exércitos iniciada pelo presidente Jacques Chirac em 1995 para ter uma ferramenta poderosa, flexível e moderna.
Em seguida, devemos refletir, dentro de um quadro europeu, sobre a reorganização das indústrias de defesa, para garantir a maior soberania francesa e europeia, ao mesmo tempo que asseguramos facilidades de financiamento. É necessário, por um lado, excetuar os gastos de defesa das metas financeiras do novo pacto de estabilidade, destacando seu valor como investimento para o futuro. É adequado, desse modo, dotar uma agência europeia de armamento com pelo menos 100 bilhões de euros levantados em dívidas mutualizadas e, finalmente, organizar uma coordenação entre os Estados-membros para distribuir geograficamente as atividades, os sites produtivos, a pesquisa e desenvolvimento e a propriedade intelectual, assegurando um nível de volumes competitivo mundialmente.
Também precisamos estreitar o vínculo entre a nação e o Exército. A guerra não é apenas uma questão de poder, mas também de resistência da sociedade. Por isso, devemos repensar o desenvolvimento de uma reserva nacional que recupere as vantagens da conscrição sem repetir seus fardos. Devemos defender e fortalecer nossa democracia buscando um debate mais esclarecido e sereno, um consenso mais duradouro e leis mais respeitáveis e mais bem respeitadas. Precisamos de salvaguardas, já que o aumento do papel e dos meios dos exércitos inevitavelmente leva ao aumento de poder e ao risco de uma espiral militarista. É necessário aumentar as capacidades de controle do Parlamento e da sociedade civil sobre questões militares e romper os vínculos entre a esfera midiática e as indústrias de defesa, para evitar qualquer captura da opinião pública.
Reconhecimento do Estado Palestino
A terceira prioridade é uma diplomacia de iniciativa que procure contribuir para a resolução das crises mundiais, mas evite a agitação que obscurece nossa imagem, dando a impressão de jogar com o medo e o belicismo: “tropas no solo” na Ucrânia, “europeização” de nossa dissuasão nuclear… São tantas ideias lançadas sem precaução. É irresponsável acreditar que as crises se dividem entre aquelas que podemos deixar apodrecer e aquelas que acreditamos ser nosso dever alimentar.
Sobre o primeiro tipo, as crises da desgraça do mundo, quase não ouvimos nada da comunidade internacional, nem dos ocidentais nem, sobretudo, da França: é o Haiti, onde as gangues tomam posse de um Estado falido; é o Sudão, que mergulha novamente na guerra civil e nos massacres, vinte anos após Darfur; é Myanmar em guerra civil. É a República Democrática do Congo. É o Líbano. É necessário renovar a abordagem, aumentar o engajamento e fazer dessas situações trágicas o laboratório de novas cooperações em favor de um objetivo comum a todas as grandes potências: garantir maior estabilidade e segurança ao sistema internacional e evitar derrapagens incontroláveis. Qualquer conflito, mesmo menor, mesmo remoto, pode agora ser o estopim de um barril de pólvora mundial. É a ocasião para colocar o Conselho de Segurança das Nações Unidas no centro das ações, com task forces compostas de atores das principais potências mundiais, como Estados Unidos, China, Rússia, União Europeia, Índia e Brasil, priorizando soluções políticas locais e políticas cooperativas de desenvolvimento.
Contudo, é claro, a maior atenção recai sobre o segundo tipo, as crises da tragédia de nosso mundo, nas quais o ciclo de injustiça e guerra nos leva para cada vez mais perto do abismo. Devemos perceber que, tanto em Gaza como na Ucrânia, deixar a guerra devorar tudo ao seu redor só aumenta, a cada dia, o risco de uma globalização do conflito. Alguns beligerantes podem até desejá-la.
Sobre a guerra em Gaza, hoje devemos oferecer uma perspectiva política crível e rápida, baseada na solução de dois Estados. Isso passa por um cessar-fogo duradouro. Todavia, diante dos riscos de expansão regional, é preciso ir mais longe e convocar uma conferência sobre a segurança do Oriente Médio, envolvendo todos os atores regionais, incluindo Israel e Irã, que possa ser tanto o início de um novo Oslo como de um Helsinki para essa região. Não se trata de resolver em algumas semanas o que se enraizou por cinquenta anos, mas de criar um quadro e um processo nos quais cada questão possa ser tratada conforme sua natureza e grau de urgência. Em Gaza, é indispensável responder com um cessar-fogo duradouro ao drama humanitário do povo palestino e ao drama dos reféns israelenses, e entender a dimensão trágica e simbólica de uma crise na qual os Estados Unidos e parcela da Europa são partes interessadas. Para avançar na Questão Palestina, a França deve equilibrar duradouramente sua posição, enviando sinais fortes. Primeiro, o reconhecimento do Estado Palestino. Em seguida, deve expressar a vontade de colocar o direito internacional acima de tudo, propondo um tribunal especial sobre os crimes cometidos em Israel e na Palestina, abrangendo tanto os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023 como os possíveis crimes de guerra cometidos em Gaza e os crimes de guerra da ocupação israelense na Cisjordânia. A paz deve nascer da justiça internacional, rompendo com a cegueira à dor do outro que perpetua a guerra.
Sobre a Ucrânia, trata-se de manter o bom equilíbrio de três eixos. Primeiro, manter o apoio resoluto aos ucranianos para repelir a violação russa do direito internacional; nesse sentido, os US$ 61 bilhões de ajuda norte-americana aprovados pelo Congresso são um sopro de ar fresco, oferecendo a oportunidade de não negociar sob a ameaça de colapso iminente. Em seguida, deixar clara nossa posição junto aos países do Sul Global, que veem apenas os “dois pesos, duas medidas” dos ocidentais, e não a defesa de uma ordem internacional garantidora da paz e da segurança. Por fim, propor um processo diplomático que conduza à desescalada, a acordos marginais ao conflito e, quando os ucranianos estiverem prontos para aceitá-lo, a um cessar-fogo que possa lançar uma negociação entre russos e ucranianos. Essa negociação deve ter três cestas: uma sobre os territórios ocupados e anexados pela Rússia; outra sobre uma arquitetura de segurança viável na Europa; e a terceira sobre a ordem internacional, considerando a renovação dos Tratados Start, que expiram em 2027, e do Tratado de Forças Nucleares Intermediárias (INF), para controlar o novo risco nuclear global. Não devemos fechar as portas a uma solução negociada por princípio.
Inventar outro mundo
Devemos também estar atentos à Ásia Oriental, onde, de Taiwan à Coreia, as ameaças de novos conflitos possíveis se multiplicam na linha de falha dos dois grandes blocos. A escolha de um endurecimento muscular no Indo-Pacífico envolve riscos de uma espiral de guerra incontrolável. Apenas a busca de um equilíbrio regional, dando espaço aos grandes emergentes da região, como Índia e Indonésia, pode evitá-lo. Não tomemos como certo que a guerra é inevitável, como parece ser muitas vezes a resignação em Washington, e saibamos tomar a iniciativa de propor formatos de discussão que possam acompanhar soluções graduais. A França não pode se encerrar na alternativa entre uma nova guerra mundial e um novo Yalta.8 Ela deve rejeitar a reconstituição da lógica dos blocos.
Raramente o mundo esteve tão inflamável e perigoso como hoje. Assistimos dia após dia ao confronto de dois mundos feridos, de dois campos mundiais lançados com força total um contra o outro, um campo ocidental agindo em nome de um progresso desestabilizador, temendo seu declínio e, às vezes, tentado a resolver rapidamente a questão; e um campo preocupado em revisar a ordem mundial em seu favor, correndo o risco de transformá-la em um mosaico de redutos imperiais cercados de paliçadas, um mundo onde, finalmente, qualquer mudança seria abafada em nome de uma estabilidade sufocante.
Entre ambos, com o Sul Global deixado de lado nesse confronto de blocos, é preciso inventar outro mundo, desenhar um caminho para um mundo compartilhado, equilibrado e seguro, capaz de evitar a catástrofe anunciada e recriar um terreno comum, garantindo a defesa dos bens comuns da humanidade, como o clima, a biodiversidade, a estabilidade financeira e a pesquisa básica. Ninguém está mais bem posicionado do que a França para impulsionar esse novo espírito do mundo e desenvolver uma nova política baseada em princípios e voltada para o movimento. Justiça, equilíbrio, segurança coletiva e busca pela paz devem ser o novo rumo de uma França consciente de que, no mundo de hoje, o isolamento leva à queda.
*Dominique de Villepin é ex-primeiro-ministro (2005-2007) e ex-ministro das Relações Exteriores (2002-2004) da França. Autor de Mémoires de paix pour temps de guerre [Memórias de paz para tempos de guerra], Grasset, Paris, 2016.
(Todas as notas são da redação.)
1 Ler Benoît Bréville, “Les États-Unis sont fatigués du monde” [Os Estados Unidos estão cansados do mundo], Le Monde Diplomatique, maio 2016.
2 Ler Serge Halimi, “Punir la France, ignorer l’Allemagne” [Punir a França, ignorar a Alemanha], Le Monde Diplomatique, maio 2023.
3 Ler Martine Bullard, “Chine-États-Unis, où s’arrêtera l’escalade?” [China-Estados Unidos, onde terminará a escalada?], Le Monde Diplomatique, out. 2018.
4 Ler John Mearsheimer, “Pourquoi les grandes puissances se font la guerre” [Por que as grandes potências entram em guerra], Le Monde Diplomatique, ago. 2023.
5 Referência ao Acordo de Munique de 1938, um pacto de apaziguamento que permitiu à Alemanha nazista anexar partes da Tchecoslováquia.
6 Conflito militar e crise política desencadeada pela nacionalização do Canal de Suez pelo Egito em 1956.
7 Ler “La France gesticule… mais ne dit rien” [A França gesticula… mas não diz nada], Le Monde Diplomatique, dez. 2014.
8 Referência à Conferência de Yalta, realizada em fevereiro de 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, entre os líderes dos Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética.
Fonte:Le Monde Diplomatique Brasil
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