Há quarenta anos, o Brasil se afunda num círculo vicioso em que o “combate à criminalidade” resulta em mais insegurança. A antiga delinquência foi há tempos incorporada pelo “crime organizado” transnacional, o que leva governos a enviarem rios de dinheiro para um modelo equivocado de segurança, prejudicial aos cidadãos, mas muito lucrativo para um projeto de poder específico. Há saídas, no entanto, e elas passam por quatro eixos de políticas de segurança pública.

Nos anos 1980, nossas casas não tinham muros. A insegurança vinha da pequena delinquência: trombadinhas, ladrões de videocassete, de toca-fitas. A população chamava a polícia ou justiceiros de bairro. Esses homens espancavam ou, nos casos recorrentes, eliminavam os delinquentes de vez. 

Resolveu? Não, muito pelo contrário. Quarenta anos depois, vivemos cercados de câmeras de segurança e nelas não vemos mais trombadinhas. Vemos um mundo violento no qual facções criminais absorveram a criminalidade local para regular mercados transnacionais.

O que aconteceu nesse período e como romper o círculo vicioso que transforma repressão em mais insegurança? É preciso admitir que a repressão ao delinquente parecia funcionar naqueles anos. O delinquente sumia do bairro. A segurança privada parecia funcionar também no começo. Os assaltos migravam para outros bairros menos protegidos. O problema é que a “era da delinquência” acabou e, com o dinheiro dos mercados de drogas e armas, o Crime – agora com letra maiúscula – se organizou contra o Estado.

E se o Crime regula mercados poderosos, quando um jovem pobre é preso por traficar drogas, outro ocupa seu lugar no dia seguinte; além disso, o que foi preso vai conhecer as facções na cadeia. Saímos de 230 mil presos em 2000 para quase 800 mil presos hoje, segundo o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. Funcionou? Não, muito pelo contrário. Sentimo-nos mais inseguros hoje, e grande parte dos crimes não é punida. Temos oitenta grupos chamados de facções, agora nos 27 estados do país. Esses grupos instrumentalizam a pretensa repressão para crescer. Contudo, a política permanece a mesma, comemorando cegamente a cada vez que um “líder de facção” vai para a prisão formar outros jovens na criminalidade.

No Brasil, não se tem pensado a segurança como política pública, mas como guerra. A parte técnica da área fala hoje em importar drones de Israel, mas é incapaz de compreender o fenômeno que ela mesma alimenta. Temos direito à segurança, e os operadores da área não nos entregam esse direito há quarenta anos. Questionados, dizem que defendemos bandido. Esse é o nível do debate.

O modelo repressivo pensado para a franja delinquente local se esgotou nos anos 1990, e desde então pessoas de todas as classes foram submetidas a assaltos, enquanto as famílias pobres e negras foram destroçadas pela violência policial. Quando há mercados financiando o outro lado, quanto mais violência de um, mais violência do outro. Basta lembrar que o PCC surgiu logo após o Massacre do Carandiru, citando-o em seu estatuto. 

Quando policiais brutos acreditam que matar melhora a segurança, eles se tornam parte do problema da insegurança. Em países com segurança pública de qualidade, as evidências orientam as ações, e converso com pesquisadores em muitos países. No Brasil, a lógica é de ódio, de mostrar quem é mais macho. Policiais assim se rebaixam ao nível da guerra violenta entre grupos armados ilegais. Já em outros países há números, raciocínio lógico e colaboração com o mundo acadêmico.

“Ah, mas nesses países ricos os bandidos não usam fuzis.” Usam sim, e os grupos terroristas mais potentes do mundo estão instalados neles. A população, entretanto, vive tranquila. A lógica de controle desses grupos não é a de sair dando tiros, mas de neutralizar suas ações preventivamente. O ódio que reina hoje no Brasil faz escorrer muito sangue, mas a segurança piora a cada ano.

Para romper esse ciclo, é preciso primeiro compreender quem está ganhando com ele. Em operações policiais que disparam 5 mil tiros no Rio de Janeiro ou na Baixada Santista, quem ganha? Ganha a indústria do armamento, da segurança privada, do militarismo, ganham os que agenciam a corrupção nas licitações que contratam essa indústria, cujos proprietários são ex-agentes de segurança pública e privada, além de milicianos. Ganha o populismo penal, ganha o totalitarismo como ideologia. 

Em seguida, é preciso entender como esse projeto de poder se financia. Há ao menos três fontes de receita. A primeira vem dos fundos públicos: quanto mais a brutalidade repressiva falha, mais se diz que é por falta de recursos. Bilhões do orçamento são destinados à segurança pública todo ano, em investimentos diretos e licitações para empresas privadas. Porém, como Gösta Esping-Andersen mostrou há muito tempo, se a direção da política pública está errada, não adianta colocar bilhões nela.¹

Oposição à uma democracia desracializada, contra a violência policial que assassina e o debate sobre o controle das polícias (Foto: Wikimedia Commons)

Com as facções se expandindo e as cadeias virando faculdades do crime, policiais perceberam que o problema não iria melhorar. No entanto, “viram oportunidade na crise” e começaram a abrir empresas. A segunda fonte de receita desse projeto de poder é então a segurança privada. Policiais agora podem concorrer a licitações, ganhando dinheiro público e cobrando por serviços que seriam direitos. Com tanto dinheiro e armas, esses policiais se tornam parte do poder político, inclusive ocupando cargos políticos, além de influenciar o Judiciário e o Ministério Público (que deveria fiscalizá-los, mas arquiva todas as mortes que cometem). Em pleno governo Lula, aprova-se a Lei Orgânica das Polícias, que dá ainda mais autonomia à corporação. Tudo isso é impensável em países não totalitários.

Livres de controles, esses homens seguem exercendo sua prática econômica mais tradicional, a extorsão, terceira grande fonte de recursos de seu projeto de poder. Policiais corrompidos predam o dinheiro nos mercados ilegais por dentro das corporações, distribuem esse dinheiro internamente e chegam a se organizar em milícias. A segurança piora, claro, mas essas fontes de financiamento aumentam enquanto o projeto de poder avança. Os brutos dominam a corporação policial e a área de segurança em geral. Os profissionais sérios, que acreditam em outro modelo de políticas de segurança, estão acuados.

O que fazer? Durante os últimos vinte anos, estudei essas saídas com muitos colegas. Chegamos a quatro eixos fundamentais de uma política de segurança: investigação de homicídios, regulação de mercados ilegais, reversão do problema carcerário e controle externo da corrupção policial. 

Uma política nacional para esclarecer homicídios é fundamental. Quem decide quem vive ou morre é o soberano de um território. O Estado brasileiro não é capaz sequer de investigar 63% dos homicídios (nove estados nem têm esse dado, segundo o Instituto Sou da Paz). Mesmo quando há definição de autoria, o Estado muitíssimas vezes não faz justiça. As facções esclarecem esses crimes nos locais e os punem ao modo delas. A facção ganha a soberania estatal. Em São Paulo, o PCC cuidou do assunto, fazendo despencar as taxas de homicídio. O mesmo ocorre em outras regiões hoje. É preciso uma política nacional de esclarecimento de homicídios, que recupere a soberania estatal sem disparar um tiro. É assim em outros países.

O segundo eixo é a regulação progressiva dos mercados ilegais, base de todo o drama. O senso comum concorda em matar traficantes de 15 anos, mas não em matar garçons que servem cerveja, uma droga. A experiência de regular desmanches clandestinos em São Paulo reduziu o roubo de veículos. É preciso discutir a regulação dos mercados ilegais urgentemente. 

O terceiro ponto é a política carcerária. No Brasil, prende-se acreditando que isso melhora a segurança, mas todas as facções nasceram, cresceram e não morrem nas cadeias. Multiplicamos o exército faccional e as alianças mafiosas internacionais, que se formam nas cadeias. Toda a política hoje é feita para que continuemos… prendendo. Há muitas alternativas saudáveis para a prisão, que deve se restringir aos crimes violentos, a pessoas que representam perigo. 

O último eixo é o controle externo e interno das polícias. A questão não é colocar câmeras nas fardas, embora tenham impacto positivo. O problema é devolver ao público o controle sobre a segurança, hoje nas mãos de grupos políticos, públicos e privados, nela incrustados. Isso se faz com controle forte. Sem mexer nesses quatro pontos, o país repetirá o que dois ministros anteriores – de direita e de esquerda – disseram juntos num evento em que estive recentemente: “Embora não quiséssemos, nos nossos mandatos só conseguimos construir mais prisões”. É preciso uma diretriz federal para a segurança, senão seguiremos no mesmo ciclo infernal em que estamos.

 

*Gabriel Feltran é diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS) da França e professor titular do Centro de Estudos Europeus e de Política Comparada da Sciences Po, em Paris.

 

¹ Gösta Esping-Andersen, The three worlds of welfare capitalism [Os três mundos do capitalismo de bem-estar], Princeton University Press, 1990.

Fonte:Le Monde Diplomatique Brasil